Rubem Penz*
Eram tantas vezes um povo, um governo e um burro.
E conta que o povo tinha um bom burro, sua força de trabalho. E, para zelar por ele, tinha o governo. Isto é, o governo recebia para cuidar do burro do povo. E, bem ou mal, era o que ele fazia, mesmo.
Um dia, precisaram ir daqui para lá. Então, o governo propôs um arranjo: subiu nas costas do burro do povo, deixando-o a pé e a levar as duas malas. E se foram, tranquilos.
Ao desviarem o caminho para beber água num riacho, a lavadeira que lavava a roupa estranhou o arranjo e perguntou:
– Que animal bonito! De quem é esse burro?
– É meu, disse o povo.
– Olha, não que eu queira me meter na vida de vocês, mas, se é seu, por que é ele (o governo) quem está montado neste burro?
O governo ficou irritado: não haveria de ser uma simples lavadeira a ter autoridade para questionar o arranjo que funcionava tão bem. Porém, diante da dúvida do povo, mudaram as posições. Agora, as malas foram para o lombo do burro e o burro foi para as costas do povo. O governo trilhou ao lado de ambos, até um pouco distante para não dar muito na vista (era, afinal, um governo com pruridos).
Ao desviarem o caminho para sentar à sombra da árvore para um lanche, o pastor que pastoreava ovelhas estranhou o arranjo e perguntou:
– Que animal bonito! De quem é esse burro?
– É meu, arfou o povo, momentaneamente aliviado do peso daquela burrice toda.
– Olha, não que eu queira me meter na vida de vocês, mas por que tanta carga está pesando nas costas do povo?
O governo ficou irritado outra vez: não haveria de ser um simples pastor a ter autoridade para questionar o arranjo que funcionava tão bem. Porém, diante da dúvida do povo, mudaram as posições. Agora, o burro, o governo e o povo andaram lado a lado, a mala do governo sobre o lombo do burro, o povo levando sua bagagem.
Ao chegarem no destino, o dono da venda que vendia víveres estranhou a maneira de viajarem e perguntou:
– Que animal bonito! De quem é esse burro?
– É meu, né?, duvidou o povo, consultando o governo com os olhos.
– Olha, não que eu queira me meter na vida de vocês, mas por que não usam essa força toda para aliviar o fardo do povo?
Aí o governo perdeu as estribeiras de vez: parece que todo mundo resolvera ter autoridade para questionar o arranjo que funcionava tão harmoniosamente. Ainda bem que já haviam chegado ao fim da fábula.
Imoral da história: o único que, diante do óbvio, nunca tem dúvidas sobre os arranjos do governo é o burro.
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* Rubem Penz, nascido em Porto Alegre, é escritor e músico. Cronista desde 2003, atualmente está nas páginas do jornal Metro. Entre suas publicações estão “O Y da questão” (Literalis), “Enquanto Tempo” (BesouroBox) e “Greve de Sexo” (Buqui). Sua oficina literária, a Santa Sede – crônicas de botequim, dez antologias, foi agraciada com o Prêmio Açorianos de Literatura 2016 na categoria Destaque Literário. Em RUBEM escreve quinzenalmente às sextas-feiras.
As fábulas às vezes tem este defeito: fazer o leitor acreditar que ele é que não entendeu direito o que o escritor quis vender.
Abraço,
Auri
Em outras, esta qualidade. Quem saberá?
Obrigado, Auri
Abraço, Rubem
Fábulas são como parábolas, fazem a pessoa pensar por si só e, se forem bem conduzidas, levarão a pessoa a chegar sozinha à mesma conclusão do seu autor, mas que ele rejeitaria se fosse dita abertamente =). Essa aí é muito boa!
Ah, perdão por ter comido o final do seu sobrenome, eu tava em viagem e postei numa lan house meio corrido. Também está uma mudança nesse gerenciamento da página, e aí eu me atrapalho às vezes. Agora consertei.
Henrique,
Um equívoco que transforma o sobrenome de um escritor num objeto de escrita é quase mágico. Tudo bem! E, sim, compor fábulas demanda muita elaboração: para o efeito que referiste, há umas doze, quinze versões antes da publicação (trocando um termo aqui, outro ali). Uma delícia de trabalho.
Abraços, grato, Rubem
Essa fábula é mesmo muito boa, sempre pertinente. Abraço!
A fábula original é uma das minhas preferidas. E cabe muito em nossos complicados tempos, Marco.
Grato, abração!
Gostei, divertido. Abraço!
Obrigado, Daniel! Divertir é bom êxito.
Abraço, Rubem