Mariana Ianelli*

Todas essas coisas que já foram nossas e perdemos, cachecol, carteira, óculos, chapéu, guarda-chuva, essas coisas e outras, temporariamente nossas, que vamos deixando pelo caminho, esquecidas num banco de praça, num café, num trem, numa esquina, Mario Quintana dizia que, uma vez perdidas, iam parar nos anéis de Saturno, e lá ficavam girando, separadas de nós, girando fora de alcance, luminosas e tristes. Mas não é sempre assim. A menos que terminem destruídas ou confinadas nas gavetas de um qualquer setor de achados e perdidos, numa catacumba de objetos sem dono, alguém haverá de encontrar e tomar para si cada uma dessas coisas como um presente do acaso, como nós também já encontramos uma vez um broche de olho-de-gato brilhando no degrau de uma escadaria, uma medalhinha de Santo Antônio no fundo de uma piscina, ou, no fundo de um armário de um apartamento vazio, uma caixa cheia de fotos e documentos de um antigo inquilino, que não sabemos bem se foi uma caixa acidentalmente esquecida ou propositalmente abandonada por razões de higiene psicológica. Nesse remoinho vivo de pertences despertencidos, eis que vamos nos presenteando, polinizando a vida uns dos outros com joias do nosso cotidiano, joias que podem até ficar girando lá nos anéis de Saturno num sonho qualquer de saudade nossa, mas que antes circulam aqui embaixo, o cachecol de um enrolado no pescoço de outro, espécie de generosidade imprevista, festa comunitária, um jogo de sorte em que ninguém é totalmente roubado nem nada fica totalmente perdido, porque existe sempre o ganho simbólico de uma história para contar sobre uma rara edição extraviada dos Caprichos, sobre uma luva vermelha desemparelhada, sobre um broche de unicórnio de prata, existe sempre uma crônica possível.

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Mariana Ianelli é escritora, mestre em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, autora dos livros de poesia Trajetória de antes (1999), Duas chagas (2001), Passagens (2003), Fazer silêncio (2005 – finalista dos prêmios Jabuti e Bravo! Prime de Cultura 2006), Almádena (2007 – finalista do prêmio Jabuti 2008), Treva alvorada(2010) e O amor e depois (2012 – finalista do prêmio Jabuti 2013), todos pela editora Iluminuras. Como ensaísta, é autora de Alberto Pucheu por Mariana Ianelli,  da coleção Ciranda da Poesia (ed. UERJ, 2013). Estreou na prosa com o livro de crônicas Breves anotações sobre um tigre  (ed. ardotempo, 2013). Na RUBEM, escreve quinzenalmente aos sábados.