Mariana Ianelli*

Não foi ele que, depois de uma dessas extenuantes sessões de autógrafos, murmurou: “Vocês matam-me”? Porque o mundo vampirizava não só o escritor, mas o homem público que era Saramago, cobrando-lhe uma onipresença tão fantástica quanto a daquele Deus em que ele não acreditava.

Já vão seis anos que Saramago não está mais aqui para ver como este mundo continua a entreter-se no caos de pequenas graças e grandes barbaridades. Ele não chegou a ver a devastação na Síria que em cinco anos de guerra civil fez quase 5 milhões de refugiados e mais de 270 mil mortos. Não viu desaparecer do planeta mais de uma dezena de tesouros arqueológicos de civilizações antigas pelo vandalismo do Estado Islâmico. Também foi poupado da multiplicação de imagens de hordas humanas desesperadas topando contra os muros e os arames das fronteiras, e de corpos de crianças emborcados, devolvidos pelo mar, escandalizando a orla das praias.

Saramago se foi antes da grande onda de conservadorismo e intolerância altear-se em conluio com o terror, promovendo, mais que divisão, uma nova pulsão de massacre que agora tem de indecente não mais se dar ao trabalho de esconder-se atrás da máscara de cínicas justificações. O homem que continua a matar por egoísmo agora expõe uma mórbida curiosidade de testar o sem-fundo aonde pode ir sua autodesmoralização. Saramago tampouco viu brilhar o fenômeno do Papa Francisco, com quem talvez ele se solidarizasse naquele sentido mais humano e mais humilde que une um ateu e um religioso contra as hipocrisias institucionais.

A pena por não estar mais aqui não é que ele já não nos acuda com palavras de resistência contra a continuidade de uma história de desastres. Saramago nos deixou um cabedal gigantesco de palavras de resistência, milhares delas ainda por semear. Nem é a pena por não assistir, ele mesmo, à festa que lhe vão fazer hoje no Auditório de sua Fundação, na Casa dos Bicos, em Lisboa. Glória, fama, encômios, não eram coisas de que ele necessitasse. A pena é só que ele não veja com os próprios olhos o quão robusta está sua oliveira no jardim da Casa de Lanzarote.

Mas não foi ele que disse, num gracejo, pouco antes de ir-se embora, que numa encarnação futura desejava nascer árvore para ficar com as raízes bem agarradas à terra? Talvez aí, nesse jardim do fim e do princípio, onde parte das cinzas de Saramago está plantada, também sua parte suficiente de vida e tempo se preserve, aos cuidados dos olhos de Pilar. No jardim da oliveira, em Lanzarote, um pedaço de memória do menino José, de Azinhaga. Então, talvez, no fim das contas, seja isto: que talvez não haja pena alguma.

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(Ilustração: Alfredo Aquino)

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Mariana Ianelli é escritora, mestre em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, autora dos livros de poesia Trajetória de antes (1999), Duas chagas (2001), Passagens (2003), Fazer silêncio (2005 – finalista dos prêmios Jabuti e Bravo! Prime de Cultura 2006), Almádena (2007 – finalista do prêmio Jabuti 2008), Treva alvorada(2010) e O amor e depois (2012 – finalista do prêmio Jabuti 2013), todos pela editora Iluminuras. Como ensaísta, é autora de Alberto Pucheu por Mariana Ianelli,  da coleção Ciranda da Poesia (ed. UERJ, 2013). Estreou na prosa com o livro de crônicas Breves anotações sobre um tigre  (ed. ardotempo, 2013). Na RUBEM, escreve quinzenalmente aos sábados.