Mariana Ianelli*
Quem sofre da doença da acumulação tem lá seus momentos inefáveis. Basta uma tarde de coragem a revirar uma das muitas caixas, gavetas, pilhas de papeis ou sacolas atulhadas para descobrir o que os anos fizeram acumular, quantas e quais notícias em recortes de jornal, quantas cartas e de quais amigos, quantas fotos e em que companhia, cartões postais, estampas coloridas, folders, mapas, ingressos de exposições, teatro, cinema, bilhetes de trem, extratos bancários, fotocópias, recibos, como se essa montanha de minúsculos vestígios fosse a realização da fábula das pedrinhas deitadas pelo caminho, sinalizando o trajeto de volta para casa, exceto pela diferença fundamental entre vida e fábula, que é ficarem as pedrinhas depois de desaparecida a casa, isso sem contar que a nossa memória dos fatos, por mais profunda e precisa, nunca chega à altura das provas acumuladas, que mesmo havendo registros de data, hora e lugar, será sempre impossível remontar às emoções de cada circunstância. E ainda há as nossas próprias cartas, que às vezes nos voltam pelas mãos diligentes e invisíveis de seus destinatários mortos, como se agora expedidas a outros de nós mesmos, e aí está um dos momentos inefáveis do acumulador de tralhas. E quando a onda de souvenirs e papéis carcomidos se levanta, frustrando todas as tentativas de inventário, o que se acumulam são convites a mínimos lutos, um deixar que afinal se desmaterializem as pontas soltas de histórias já perdidas, afinidades caducadas, paixões tornadas cinzas, num ato radical de higiene e redenção que abra espaço a novas acumulações. Da gigantesca pilha de destroços, hão-de salvar-se, talvez numa só gaveta, umas poucas relíquias que ainda fazem estremecer um coração, e este será o pontinho túmido e fogoso de concentração da matéria que, um dia, lá na frente, explodirá numa nova reviravolta dos tempos como no álbum de um íntimo Big Bang.
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* Mariana Ianelli é escritora, mestre em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, autora dos livros de poesia Trajetória de antes (1999), Duas chagas (2001), Passagens (2003), Fazer silêncio (2005 – finalista dos prêmios Jabuti e Bravo! Prime de Cultura 2006), Almádena (2007 – finalista do prêmio Jabuti 2008), Treva alvorada(2010) e O amor e depois (2012 – finalista do prêmio Jabuti 2013), todos pela editora Iluminuras. Como ensaísta, é autora de Alberto Pucheu por Mariana Ianelli, da coleção Ciranda da Poesia (ed. UERJ, 2013). Estreou na prosa com o livro de crônicas Breves anotações sobre um tigre (ed. ardotempo, 2013). Na RUBEM, escreve quinzenalmente aos sábados.
Diante de mim, tralhas inflamadas
do tempo veloz, ígneo labirinto…
No porão do navio, ânsia ainda sinto
por ter convés solar, rol de sacadas
de onde possa ver outra vez vida,
em todas redondezas, fundo e altura,
no espaço em que flutua escandida
dimensão inconsútil de ternura.
No exato movimento em que estou só,
sem pôr minha cabeça por desvãos
das ruas, rodamoinhos ou esperança,
Desato no presente apenas nó,
não sofro do passado mais demãos,
mais só tenho futuro como herança.
Dos papéis arquivados
sobe um gemido.
Um verso hermético
há muito tempo guardado
só agora
descobre o seu sentido.
O acumulador não confia em sua memória. Ou, ao contrário, não confia em seu esquecimento. Sempre encantador, Mariana! Abração, Rubem
Me declaro compulsiva arquivadora de memórias mais pelo prazer material de te-las entre as mãos que na verdade correm a ser lavadas pois a alergia a papel velho predomina mas não impede o colecionamento, fotos, diplomas de parentes que se tornaram históricos pela importância das memórias nas mudanças que o tempo fez com a educação , coisas que ficariam bem em museus , de resto guardo certas coisas apenas pelo prazer de vê-las de quando em quando pois as tenho guardadas também na memória e muitas no coração ! Mas que irá dar uma trabalheira danada a quem delas for se ocupar quando não mais eu estiver aqui, lá isso sei! E me pergunto é questiono qual será minha reação quando em outra dimensão, se irei me tessentir ou rir de quem abraçar tão árduo fardo , certa estou que a ninguém, por uma razão ou outra algo disso tudo merecerá um olhar de simpatia. Mariza C.C. Cezar
Que maravilha. Ler Mariana é também conhecer uma nova interpretação do Big Bang. Beijo grande!