Mariana Ianelli*

Não faz tanto tempo – 15 anos? 20 anos? – era a delícia das cartas em papel que faziam chegar o cheiro do outro, os erros e as paixões e as saudades do outro. Pena que tenha ficado raro sentir essas trilhas manuscritas do amigo, seus descaminhos, seus circunlóquios, mas, mesmo assim, por outros meios, sobrevivem os companheiros epistolares. Raros que sejam, eles ainda voltam de quando em quando sem maior interesse que o de se dar à prosa solta, num convívio de que fazem parte os desertos de espera por novas mensagens e os festins de leitura com suas exclamações, suas reticências e as muito francas opiniões sobre tudo.

O amigo epistolar é aquele que frequenta nossa casa interna, incluindo aí o recinto de pensamentos lunares que, por qualquer razão, não abriríamos num encontro ao vivo. Não que o amigo epistolar seja menos amigo num encontro ao vivo, senão que esse tipo de amizade acontece numa dimensão paralela de existência em que a palavra por si mesma tem um efeito sortílego de presença. Há amigos epistolares que não encontramos pessoalmente durante anos, ou mesmo por toda uma vida. Existem até os que evitam o cara a cara por medo de que surja uma distância, uma nuvem de cerimônia que nunca antes houve entre as palavras, ou pudor de que rebente uma paixão ou alguma outra surpresa incontornável.

É também magicamente físico o convívio entre os amigos epistolares. Um provoca ebulições no outro, ansiedade, euforia, súbitas gargalhadas e, às vezes, uma ligeira mágoa, a que se segue uma inquietude, a que se segue uma compreensão muda, por causa de um silêncio estendido. Há ainda a pedra na garganta quando as mensagens param, ou mais, quando sustam, não por capricho do amigo, não por uma vida atarefada ou por revanche numa guerra de silêncios. Quando as mensagens sustam porque um dia, e desse dia em diante, falta o amigo. Vem alguém falar em nome dele, participar a notícia, e então aquele medo de uma insuspeita distância se concretiza. Das muitas mortes que vamos amealhando nesta vida, essa é a que dói na alma do verbo. É a morte que nos lega um triste espólio de palavras incorrespondidas.

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Mariana Ianelli é escritora, mestre em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, autora dos livros de poesia Trajetória de antes (1999), Duas chagas (2001), Passagens (2003), Fazer silêncio (2005 – finalista dos prêmios Jabuti e Bravo! Prime de Cultura 2006), Almádena (2007 – finalista do prêmio Jabuti 2008), Treva alvorada(2010) e O amor e depois (2012 – finalista do prêmio Jabuti 2013), todos pela editora Iluminuras. Como ensaísta, é autora de Alberto Pucheu por Mariana Ianelli,  da coleção Ciranda da Poesia (ed. UERJ, 2013). Estreou na prosa com o livro de crônicas Breves anotações sobre um tigre  (ed. ardotempo, 2013). Na RUBEM, escreve quinzenalmente aos sábados.