Raul Drewnick*
Talvez tivesse sido um passarinho, talvez o homem que havia acabado de passar por ela. O fato é que, vendo-se de repente com uma flor na mão, ela a trouxe ao colo, para protegê-la do frio da manhã.
***
Na saída da igreja, a noiva atirou o buquê e o fez tão desastradamente que precisou apanhá-lo de volta, porque lhe caiu na cabeça. A isso se atribui a circunstância de, três meses depois, ela haver abandonado o marido para ir viver com outro homem.
***
Subitamente ele foi tomado por uma ternura tão aguda que sentiu o ímpeto de beijar as flores no canteiro principal do parque. Temendo parecer insano, não o fez. Ajoelhou-se, porém, e lhes disse bom dia, com a voz que usava para falar com os pássaros.
***
Primeiro o escritor comete o ato. Depois chama o leitor para ser seu cúmplice.
***
Na boca dela toda palavra era bela. Até um cacófato soava bem.
***
Quando comentaram que o garoto no caixão parecia mais corado que nunca, alguém disse que talvez fosse uma timidez natural num morto ainda não totalmente cônscio do seu estado.
***
Resolveu não chamá-la de fada, embora toda vez que ela ajeitasse os cabelos o ar se pusesse em alvoroço, como se tocado por borboletas.
***
Quando ele diz “amor”, espera seu violino interior ferir a nota mais aguda e, quando ele a fere, sente que a alma, que só essa palavra de quatro letras acordaria, desperta em êxtase, como uma flor abrindo-se para oferecer seu orvalho ao sol.
***
Para nos transformar, a arte há de provocar em nós uma vertigem ou ao menos uma estranheza, jamais uma sensação de identidade.
***
Hoje o normal seria Adão e Eva morarem num paraíso fiscal.
***
Se o amor está mesmo ultrapassado, mandem-me, por favor, ao passado, a um ano em que haja uma mulher, ao menos uma, que não ache desarrazoado alguém morrer de paixão por ela.
***
Nascido numa época em que amores desenganados bebiam soda cáustica ou se atiravam de viadutos, ele deplora sua falta de heroísmo toda vez que escreve um de seus poemas lamurientos.
***
Dez amplexos jamais chegarão a valer um abraço.
***
A literatura tem as costas largas. Quanta vagabundagem ela carrega. Anos, às vezes décadas, sob a promessa, sempre adiada, de uma obra-prima.
***
Os suicidas costumam ser pessoas sérias e bem-compostas, dessas que para as ocasiões solenes escolhem a melhor roupa.
__________
* Raul Drewnick é jornalista, trabalhou 32 anos no Estado de São Paulo e na antiga revista Visão. Escrevia crônicas para o Caderno2 e para o caderno Cidades do Estadão, além da Vejinha/São Paulo, Jornal da Tarde e o antigo Diário Popular. Escreveu os livros de crônicas“Antes de Madonna” (Editora Olho d’Água) e “Pais, filhos e outros bichos” (Lazuli/Companhia Editora Nacional), além de ter feito parte de coletâneas e antologias. Possui um livro de contos e duas dezenas de novelas juvenis. Na RUBEM, escreve quinzenalmente aos domingos.
Raul, mais uma vez, dá tiro certeiro para todo lado. Viva ele.
Domingo especialmente lírico com Raul, este incansável fautor de estrelas, vaga-lumes e outros brilhos.
Nelson, Mariana, tanta coisa para cantar, e uma garganta, só, para o canto.
Gostei! Ri, me encantei, enterneci, ri de novo e outra vez me enterneci! Posso até ter passado um pouco mais rápido aqui ou ali, mas cheguei a retornar ao anterior e me demorado um pouco mais, porém nada descartei! Gostei e queria divulgar uma ou outra, trocar impressões , comentários , mas não ousei! Mariza C.C. Cezar
Que brilho! Agradecido.