Trago para a noite o que não se dissolveu com o dia e a escuridão acolhe o assunto em seu regaço. Tão prestimosa que é a escuridão, ao nosso dispor… Mesmo enxotada por uma manhã claríssima, lá está ela nos seguindo por alguma fresta de fosso. Noite alta, aqui onde escrevo, é quando o tal fosso não mais se acanha e toma com seu apetite de boca bandos de gritos extraviados das palavras. Faltando-me o céu e todas as luas, tenho agora a rua muito próxima e os sons que passam por ela, da meia-noite às cinco, muito nítidos.  É uma sirene de ambulância, é uma sirene de polícia, é um carro a cem por hora com pneu chiando na esquina, é o louco do bairro que não morre – nosso escândalo imprescritível –, é um choro insistente de criança, é um telefone que chama sem nunca ser atendido, é um bêbado desvairado de raiva quebrando garrafa e pisando vidro em outra esquina, é um choro agudo de bicho. Todos esses sons me chegam nítidos e parecem tão sintonizados, nos seus berros, com o que trago desses últimos dias, que de repente a própria escuridão se faz assunto, essa boca de gritos audíveis, sem rumor cotidiano que os abafe, buraco das febres insones, dos apelos animais por socorro, que insistem e insistem. E se essas palavras por enquanto não conseguem amanhecer numa alquimia, se deliberadamente omitem os sabiás das quatro da madrugada (que também insistem), é porque a escuridão está por aí, mesmo no seio de uma manhã claríssima, por onde passamos em geral absortos ou ligeiramente enganados, ocasionalmente felizes, sem nem uma ponta de arrepio por sua iminência.

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Mariana Ianelli é escritora, mestre em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, autora dos livros de poesia Trajetória de antes (1999), Duas chagas (2001), Passagens (2003), Fazer silêncio (2005 – finalista dos prêmios Jabuti e Bravo! Prime de Cultura 2006), Almádena (2007 – finalista do prêmio Jabuti 2008), Treva alvorada (2010) e O amor e depois (2012 – finalista do prêmio Jabuti 2013), todos pela editora Iluminuras. Como ensaísta, é autora de Alberto Pucheu por Mariana Ianelli,  da coleção Ciranda da Poesia (ed. UERJ, 2013). É autora dos livros de crônicas Breves anotações sobre um tigre (2013), Entre imagens para guardar (2017), Dia de amar a casa (2020), Prazer de Miragem (2022) e Turno da Madrugada (2023), todos pela editora ardotempo. Na RUBEM, escreve quinzenalmente aos sábados.