Há quase oito anos escrevi aqui sobre o campo de teste dos Estados Unidos no Novo México, em Los Alamos, berçário nuclear de “Little Boy” e “Fat Man”, as bombas que iriam derreter Hiroshima e Nagasaki em agosto de 1945. A crônica, publicada num dia 16 de julho, lembrava a data do teste da primeira bomba atômica dentro do chamado Projeto Manhattan.

O famigerado “Oppenheimer”, filme de Cristopher Nolan, retoma esse período da história com lupa na trama de colaborações e disputas entre cientistas, políticos e militares que resultou na explosão dos gigantescos cogumelos de morte cuja imagem todos temos de memória.

Há, no filme, um diálogo entre o presidente Truman e Oppenheimer depois dos bombardeios. O físico, a portas fechadas, confessa que sente ter “as mãos sujas de sangue”, ao que o presidente, impassível, lhe estende um lenço, emendando: “Você acha que alguém em Hiroshima se importa com quem criou a bomba? Eles se importam com quem a soltou”.

Num caldo fervilhante de terror e fascínio, vaidade e poder, culpas e ambições, o epíteto “pai da bomba atômica” era também o que distinguia Oppenheimer da imensa rede de envolvidos como numa hierarquia de demônios. O físico falaria contra a bomba, enfrentaria a rejeição da Segurança Nacional, aguentaria algumas alucinações, mas, lá na outra ponta da história, não deixaria de apertar a mão do colega traidor, a quem estaria afinal sempre unido na rede cooperativa que deu ao mundo a guerra nuclear.

Os quilotons morais, pelo que sabemos, parece pouco terem afetado os outros membros dessa trama, exceto no caso do piloto Claude Eartherly. Esse caso inspirou um conto de Anna Maria Martins, de 1973, chamado “O piloto”. Lembro agora desse conto pelo diálogo do filme entre Truman e Oppenheimer.

Dos três aviões do Esquadrão de Bombardeio que participaram do lançamento em Hiroshima, Eartherly estava no primeiro, que sobrevoaria a região antes dos outros, para apurar as condições meteorológicas. Depois viriam o Enola Gay com a bomba e o avião que faria o registro fotográfico das colunas monstruosas de gente vaporizada. Ou seja, não foi Eartherly quem efetivamente lançou a bomba. Mas, no conto de Anna Maria, ele enlouquece como se a tivesse lançado. E, de fato, Eartherly enlouqueceu na vida real, cometendo pequenos crimes autodesmoralizantes depois de deixar a Força Aérea.

Nenhum dos demais pilotos teve nem sombra de remorso. Van Kirk, um dos tripulantes do Enola Gay, afirmou numa entrevista, no sexagésimo ano da era nuclear, que faria tudo de novo. Mas o piloto do conto de Anna Maria vê duzentos mil pares de olhos flutuando ao seu redor, duzentos mil pares de olhos fixos nele, sem revolta nem desespero, apenas olhos que olham com tristeza infinita, olhos que nunca o abandonam, nunca se apagam.

Obsedado pela expectativa do teste em Los Alamos, Oppenheimer sussurra no filme: “Isso não é bom para o coração”. Tudo é exorbitante, a potência das bombas e da loucura, a orquestração de altos conhecimentos para a produção do horror, os bilhões de dólares gastos à época com o Projeto Manhattan. Exorbitante tristeza flutuante. E ainda, no mês passado, foi vendido num leilão em Boston um relógio que um soldado britânico colheu das ruínas de Hiroshima. Um relógio derretido, marcando 8h15, hora do cogumelo da morte, por 31 mil dólares.

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Mariana Ianelli é escritora, mestre em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, autora dos livros de poesia Trajetória de antes (1999), Duas chagas (2001), Passagens (2003), Fazer silêncio (2005 – finalista dos prêmios Jabuti e Bravo! Prime de Cultura 2006), Almádena (2007 – finalista do prêmio Jabuti 2008), Treva alvorada (2010) e O amor e depois (2012 – finalista do prêmio Jabuti 2013), todos pela editora Iluminuras. Como ensaísta, é autora de Alberto Pucheu por Mariana Ianelli,  da coleção Ciranda da Poesia (ed. UERJ, 2013). É autora dos livros de crônicas Breves anotações sobre um tigre (2013), Entre imagens para guardar (2017), Dia de amar a casa (2020), Prazer de Miragem (2022) e Turno da Madrugada (2023), todos pela editora ardotempo. Na RUBEM, escreve quinzenalmente aos sábados.