Um vestidinho rosa quadriculado, que parecia um aventalzinho. Babados brancos nas mangas regatas, na barra, e na minha mão uma lancheira que eu escolhi a dedo, uma parte de mim coração, a outra ardência. O cheiro de novo. De estojo ainda cheio, canetas ainda tampadas, de chão de pátio meio-molhado antes do recreio, fomos das primeiras a chegar, eu sorria chorando pro primeiro dia. Naquela época eu não sabia falar saudades, mas meus olhos sim.

O chão de caquinhos cerâmicos daquele quintal, você também esteve lá, e isso é uma das coisas que nos une. Eu achei que abrindo a porta, no escuro, estaria nos arriscando. Demorei muito para abrir, porque imaginei todas as hipóteses mais mirabolantes, pensei em relâmpagos, janelas enroladas em cortinas infinitas, bruxas e danças incompreensíveis, e tive muito medo, sem saber que anos depois eu gostaria de tudo isso. Metade vontade, metade consequência, e assim experimentei o meu primeiro erro. A minha primeira poesia. O meu primeiro fim. O meu primeiro recomeço. Lembro de piscinas de plástico estampadas e flores encaixadas entre os fios de cabelo para uma Polaroid, a data laranja nesta foto que, hoje, nem data tem. Pakalolo estampado na minha coxa, e um menino que olhou minha roupa nova, mas nunca gostou de mim. O sinal da cruz a cada decolagem, e voar é encontrar um eu tão autêntico, que dá medo de ser feliz assim pra sempre. Aterrissar parece mais seguro, o bom da vida entre o que é certo e o que arrepia.

Mãos muito enrugadas, veias à mostra, unhas tão cansadas, mas não menos bem feitas, a mais linda vida entrelaçada nos meus dedos. Setenta anos nos separam, mas as mãos transformam números em um livro fechado, coberto de tempo, ninguém nunca abriu. Não temos idade, somos amigas.

Uma vida que nunca viu tanto rosto atrás de pano, ruas meio-encolhidas, pessoas-bicho, o mundo, que as deu vida, ameaça a morte. O outro lado da história.

Sonhei com tanta gente, mas não sei se é o que eu fui ou o que nunca fomos.

Eu já cheguei a gostar da textura do portão, das ondas das calçadas, do cheiro de cidade, de tocar nas frutas da quitanda, e tentar adivinhar se elas estavam prontas.

Porque, nós, nunca estaremos.

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Drica Muscat tentou de tudo, trabalhou em diferentes áreas, e mesmo quando, de birra, quis rejeitar a escrita, escrever foi a única forma de falar sobre isso. Fundadora do blog dricamuscat.com e vencedora de alguns concursos literários, mora em Paris, onde estuda literatura lusófona na Sorbonne. Gosta de ler mensagens do celular de quem senta ao seu lado no metrô, e tem muita saudade de feijão. É mãe de um gatinho preto, e, segundo uma terapeuta floral, “É doce, mas nem tanto”. Na RUBEM, escreve quinzenalmente às quartas-feiras.