(Imagem: Átila Roque)
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Em quarentena, a noção de espaço muda, se é que o próprio espaço não mude. Vamos com calma: a noção de espaço muda. Acostumado a caminhar — às vezes sozinho, noutras com os amigos Marco Antonio e Fernando — dez quilômetros pelo Aterro, nesta época de confinamento, às 16h, vou do quarto ao banheiro, do banheiro, passando pela sala e pela cozinha, à área de serviço e, de lá, volto ao quarto e recomeço. É uma caminhada bem menor que aquela sob o sol, margeando, como disse Lévi-Strauss, segundo Caetano Veloso, a boca banguela da praia de Botafogo — ando dez minutos e não dez quilômetros. De manhã, tomo quinze minutos de sol.
Rotina. Rotina e disciplina. Resignação com um tempero de desobediência. Se o presindecente nos quer em vida normal, estar confinado é desobediência civil. Portanto desobedeço. Mas, neste instante, quero escrever sobre o confinamento, a política em nazi menor sustenido deixo um pouco de lado, na entrelinha, sob o tapete.
Se não me organizo, nem sei o que pode acontecer. Chutar o medo, descer à rua, dançar pela calçada, entrar no mercado apenas para ver o preço do óleo da soja colhida no oeste do oeste do Centro-Oeste? Seria lindo, não fosse estúpido. Fico em casa e, à distância, participo de reuniões de trabalho em plataformas impressionantes, mas incapazes de fazer da reunião uma reunião de fato. Quando vejo, em miniaturas, todos os colegas, deparo-me com pessoas pouco preocupadas em olhar o outro ou para o outro. Ao contratempo, a solução possível. O virtual é o novo aqui, um menos aqui que o aqui de sempre, pois falta-lhe sutileza.
Estranho mundo. Criticávamos as redes sociais por nos darem a falsa sensação de proximidade, e agora é tudo que temos. Então, reescrevo a frase anterior: as redes sociais são a única forma de encontro. Me dê um emoticon ou um like e, de curtida em curtida, superemos a morte diária. De curtida em curtida, cantemos. De curtida em curtida, falemos daquele meme, daquele vídeo, daquele verso.
Depois que o espaço desmilinguiu-se e perdeu o sentido, construímos a vizinhança afetiva. Nela, o Whatsapp, o Facebook e o Instagram são as janelas abertas de onde bate-se papo com primos na Suíça, com a quase irmã na cidade natal, com um ex-colega de trabalho. Trocam-se receitas, poemas, chistes. Treta-se. Alguns vizinhos trocam de roupa sem se preocupar com o olhar curioso lançado de outra janela. Muitos, frágeis, desmoronam sem se preocupar com a própria vaidade. Por precisão, por sufocamento, escancaram-se as janelas e as portas. Os homens são ou estão ou parecem bons.
Sem querer quebrar o encanto, não continuaremos bons depois de tudo. Crucificamos Cristo, beijamos a mão de Torquemada, dizimamos autóctones em todos os hemisférios, passamos por inúmeras guerras, duas chamadas de mundiais, e, até hoje e diariamente, matamos crianças na Síria e nas favelas brasileiras. Então, me desculpem, sairemos os mesmos da quarentena, usando máscaras, é verdade e igualmente simbólico. E não apertando a mão dos amigos. E não beijando a torto e a direito. E temendo dar ao corpo o alimento do corpo alheio.
É possível salvar-se do pessimismo pensando que em breve viveremos em Marte, em breve não contaremos mais a idade em anos, mas em séculos: veja aquela criatura, um século e já está pensando em deixar a casa dos pais. Em breve, a inteligência artificial nos livrará do mal, amém. Fiquem tranquilos, eis a gota de otimismo, a espécie humana estará salva a despeito dos muitos que não têm resistido à atual ação ostensiva da morte.
Os dias são, mas não sabermos como são de fato. Esta crônica é, mas não sabemos quão crônica é. Eu, o último fio desse novelo, dessa novela, acordo e durmo varado de interrogações. Só me resta então, de minha janela pan-óptica, recitar, em tom de até logo, um verso meio de improviso e sarcástico até sob chuva de canivírus.
Se pedir o seu amor, meu amor,
manda-me-lô, criptografado
e higienizado em álcool em gel, safra 2020,
pela deep web,
mas não envie nudes, meu amor,
já me esqueci como ser happy.
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* Alexandre Brandão é autor, entre outros, de “O bichano experimental” (Editora Patuá, 2017), uma seleção de suas crônicas, algumas publicadas aqui na RUBEM, e de “Qual é, solidão?” (Editora Oito e Meio, 2014). Além de escrever crônicas no CNP Notícias, jornal de sua cidade natal, Passos (MG), tem contos e crônicas publicados em revistas eletrônicas como Pessoa, Cruviana e Germina e na InComunidade (de Portugal). Participa do grupo Estilingues (www.facebook.com/estilingues), que publica livros de contos para circular fora do círculo comercial. Na RUBEM, escreve quinzenalmente aos domingos.
Ah que verso adorável, mas o primeiro voo pra Marte deve demorar, melhor resolver as coisas por aqui mesmo. Abração!
O voo para Marte nem demora tanto assim, dependendo de como você toma assento na cauda do cometa.
Adorei. Acho que o tal “novo normal” é um outro entendimento sobre tempo e espaço. E sobre prioridades. O resto é o “velho.normal”, que de normal não tem nada.
É isso mesmo, Jacqueline, normal onde, não é? (Obrigado pela visita!)
Alexandre, a melhor tradução do isolamento nessa pandemia! Foi como quando lia Fernando Pessoa e sentia que ele, o grande Fernando Pessoa, era meu “parça” na vida. O detalhamento da desconstrução do calor humano reconstruído no único calor virtual possível é tão real e tão pungente! Sua crônica é de um delicado desalento que vira um
Poema que ainda pede o amor, asséptico, mas confessional e…… aí…. cheio de possibilidades.
Lúcia, vou me repetir, sua leitura é tão especial, tão bonita e fraterna. Só agradeço sermos parças na vida (mesmo nesse vida que estão nos impondo).
Esta é a ideia… agora.. Abraços, DRR
Agora e talvez para sempre, caro Daniel.
Confinados e afinados, Alexandre! Ao som de poemas de grande valor!
Em dó maior de nós mesmos.