(Imagem: Átila Roque)

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Chovem memes, chovem histórias aterrorizantes. Chove sufoco, chovem gestos de solidariedade. Chove paranoia, chovem motivos para a paranoia. Narrativas contrastantes chovem igualmente e chovem hipocrisia e má-fé ou “dá cá meu pinhão primeiro”. Bem, nós que aqui estamos vamos rindo e chorando, e nesta crônica rio um cadinho para chorar outro tanto.
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Depois da quarentena

Sou moço bom, recatado e do lar, com alguns episódios de fuga para o boteco. Pois bem, então, não se escandalizem com o que vou dizer, é só que esse confinamento deixa a gente carente como o quê.

Passado tudo isso, um abracinho nos amigos vai ser pouco, melhor pensarmos desde já numa alternativa forte e acolhedora. Acho que vai ter de ser uma suruba mesmo, respeitosa e sem pecado, mas suruba.
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Discussão, discussão, mas virar as costas para a unanimidade provisória…

Discutir se o confinamento deve ser radical ou não, tudo bem. Dizer que, se confinados, a economia esfarela, tudo bem. Agora, quando se forma um entendimento, que pode ser conservador, excessivo — ninguém sabe por enquanto —, ouvir de uns e outros, em particular de médicos, “esqueça isso, a crise é maior que a doença”, dá uma leseira, um “ai, ai, mundo”.
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Abrir o negócio

Resolvi, amanhã vou abrir meu negócio.

Mas, Xandão!

É, chega. Já deu, é mimimi e mumuuuuu demais. Tô no preju.

Então tá, se é assim, que assim seja. Mas, a propósito, Xandão, que negócio é esse que você vai abrir?

Ah, meu caderninho de poemas. Ele tá bem ali, na escrivaninha, fechado nem sei desde quando.
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O nome dos mortos

Há um momento em que são números. Muitos contaminados na China; taxa de letalidade de tantos por cento. A Itália, apesar das óperas cantadas em suas varandas, apesar do gesto espetacular do Papa, na praça vazia, tem números ainda mais alarmantes. A Espanha perde para o touro da doença. Ninguém vela seus mortos, meras estatísticas. Um dia, no entanto, a morte passa a se chamar Daniel, dona Maria, Godofredinho do Posto, filho da Zuleide. Aí é tormento, abismo e queda.
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Bate-papo à distância

Que tal uma conversa (a)fiada?
À distância sanitária aconselhável
por vídeo, áudio, chamada telefônica ou sinais de fumaça
a gente desenrola uma prosa, fala mal de Maria
bem de Jandira
de nós a gente só fala que vai levando.

Você pensa em como seria sem internet e rede social
eu especulo como foi na gripe espanhola
você exclama: nó!
e eu rio. Rio de nervoso, explico. E você ri, ri de mim.
Acabamos numa gargalhada besta. Para, você pede.
Não consigo, gaguejo. Mas a gente para.

Você comenta sobre o moço que se despediu da família pelo celular
reclamo que durmo mal. Você fala das pílulas, do coquetel de vitaminas
confesso que senti um desejo doido um dia desses,
você chora, sem vergonha nenhuma, chora.
Você precisa de um abraço. É, você concorda lacônico.
Assobiamos músicas diferentes, as duas sobre amigos.

Sugiro que a gente conte uma piada. Nem pensar, você reage.
É piada demais, o dia inteiro, você se encheu delas.
Mas eu queria contar uma. Uma só.
Conte, você ordena.
Vai passar.
É uma piada? Você acha uma pena que eu continue o cínico de sempre.

Depois do silêncio
você pergunta como estou
vou levando, eu digo. E você?
Vou levando.
Não foi sempre assim?
Quem pergunta? Eu ou você, não sei.
Mas foi, foi sempre assim. Era Maria quem dizia isso. Ou era Jandira.
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Barrichello

O presindecente chegou tarde à retidão, e a plateia que ainda o incensava, naquele momento aplaudia, com o perdão da rima, o bufão.

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Alexandre Brandão é autor, entre outros, de “O bichano experimental” (Editora Patuá, 2017), uma seleção de suas crônicas, algumas publicadas aqui na RUBEM, e de “Qual é, solidão?” (Editora Oito e Meio, 2014). Além de escrever crônicas no CNP Notícias, jornal de sua cidade natal, Passos (MG), tem contos e crônicas publicados em revistas eletrônicas como Pessoa, Cruviana e Germina e na InComunidade (de Portugal). Participa do grupo Estilingues (www.facebook.com/estilingues), que publica livros de contos para circular fora do círculo comercial. Na RUBEM, escreve quinzenalmente aos domingos.