Dizer a palavra gato três vezes talvez não seja nada mais do que isso e não apareça diante de você nada além do que já estiver ali. Mas, se você não é um daqueles toleirões que precisam de três toques para saber se um pedaço de madeira é um pedaço de madeira, talvez dizer uma vez baste.
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Não lhes digo que até manejando um cotonete a condessa era demoniacamente sensual. Mas também não lhes digo que não.
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Morto inadimplente é aquele que deve até o terno com o qual é enterrado.
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O gato morreu há uma semana, mas o sol, como todas as tardes, se demora ainda na poltrona e espera que ele surja de repente de algum canto da sala e se atire sobre ele com aquelas garras brincalhonas.
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Sempre que arranja um tempinho, o assassino chato volta à cena do crime.
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Se ainda houvesse musas e eu merecesse uma, ela haveria de ser nordicamente loira e interminavelmente longilínea.
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O velho poeta vem sonhando com braços e não sabe se, na escala dos pecados, lança isso como uma circunstância atenuante ou agravante.
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Mas que pouca-vergonha é essa? Pensam que isto aqui é um bordel?, exasperou-se dona Dora, atirando o chinelo nos dois passarinhos acasalados no sofá e sentindo mais do que nunca a ausência da finada gata Beijoca.
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Durante muito tempo, o sonho de todo patinho feio era tornar-se um cisne parnasiano.
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Os dois vendedores da livraria ouviram um gemido vindo da estante de poesia. Aproximaram-se e ficaram atentos. “Dá pra acreditar? É este aqui, disse um, puxando um livro. O outro riu: “Antologia de poesia concreta. Como é que pode? Ô cimento chorão.”
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A viúva, no velório, elogiando o terno do defunto: “É o que ele usou no casamento. Quarenta e seis anos. Olha aqui, não parece novo? Dez prestações no Mappin. Lembram do Mappin?”
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Procurando uma explicação para sua já incômoda longevidade, ocorreu-lhe, com vergonha e tristeza, que talvez estivesse economizando em demasia suas forças: a última vez na qual beijara uma mulher quase nos lábios tinha sido no velório de um parente arruinado pela crise dos anos 90.
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* Raul Drewnick é jornalista, trabalhou 32 anos no Estado de São Paulo e na antiga revista Visão. Escrevia crônicas para o Caderno2 e para o caderno Cidades do Estadão, além da Vejinha/São Paulo, Jornal da Tarde e o antigo Diário Popular. Escreveu os livros de crônicas “Antes de Madonna” (Editora Olho d’Água) e “Pais, filhos e outros bichos” (Lazuli/Companhia Editora Nacional), além de ter feito parte de coletâneas e antologias. Possui um livro de contos e duas dezenas de novelas juvenis. Na RUBEM, escreve quinzenalmente aos domingos.
Essa do gato e do sol foi um espetáculo!
Boa tarde de Segunda Raul! Sempre um prazer ler você e suas tiradas geniais! Difícil dizer da qual gostei mais! Triste fiquei ao saber que nem nós belos verdes anos poderia ter sido uma musa, nunca fui longilínea e nem escandinava! Melhor me conformar com algumas crônicas e eventuais poesias de pés quebrados!
Minha cara, minha caríssima Mariza, respondo-lhe só hoje (29/02). Nesses dias todos, andei com uma dessas gripes de cuja mãe se pode dizer, com ímpeto e segurança, que não há de ser séria, se bem que os efeitos o sejam (e como!) Cheguei a pensar ter sido aquinhoado com a versão moderna (Coronavírus), mas qual! Como sempre, fiquei na menção honrosa, frustrando-se assim mais esse desejo de glória, e com essa culpa da qual espero ser eximido depois de lidas estas alegações que faço já quase restabelecido (Deo gratias).