Se fosse fácil não existiria cigarro e nem laxante. Não haveria erro, gafe, piada sem nenhuma graça, daquelas que o sujeito tem vontade de chorar, e voltar para casa cabisbaixo. Não existiria literatura, palavras não seriam necessárias: já estaríamos aliviados, vingados, resolvidos com a nossa infância que não se estenderia pela vida inteira.

Se fosse fácil não haveria ressaca ou telemarketing, não existiria uma rua pela qual nunca mais queremos passar, e outra para a qual sempre vamos em busca de acolhimento. Dáblio não seria letra. Não existiria matemática e nem a mão suja de giz branco do professor de matemática, que escrevia na lousa nosso fracasso em fórmulas que eu nunca decorei.

Se fosse fácil não haveria vergonha, e um vão de silêncio deixado dentro da gente por uma intenção escondida no fundo de um desejo inconfessável. Não haveria fundo. Nem poço. Nem fundo do poço. E talvez a moça sentada na calçada, neste exato momento, estaria sorrindo.

Se fosse fácil não haveria ônibus lotado, e medo de atraso naquele trabalho em que os chefes não sabem o que é ônibus lotado. Lavar louça não causaria briga. Falaríamos alemão.

Se fosse fácil não haveria religião, dívida, pecado. Todos saberiam o hino de cor. A previsão do tempo teria acertado. Crianças louvariam o diferente, e, se assim fosse, não seríamos tão inseguros. Se fosse fácil não haveria calórico e nem academia, e luzinhas de natal nunca enroscariam. Escolhas não seriam necessárias, e, caso fossem, nunca escolheríamos errado. Se fosse fácil não existiriam benzodiazepínicos ou cartomantes. Não haveria política. Nem Hipoglós. Milagre seria panfletado na rua, e ninguém precisaria de sorte. Pobres não lutariam tanto, e ricos seriam convencidos de que nada disso é justo. A lua seria acessível a cada domingo na hora do Faustão.

Se fosse fácil eu teria respondido educadamente, teria pensado duas vezes, teria me colocado no lugar do outro, não teria enfiado os pés pelas mãos, e todas as coisas que pais tentam, tão em vão, ensinar para os filhos.

Se fosse fácil não se falaria em colesterol, artérias, meditação. Arte não valeria dinheiro, Amy estaria viva, professores estariam satisfeitos, cartas ainda seriam escritas, não haveria abre-latas, flores resistiriam. Não existiria divórcio. Nem colonoscopia. Muito menos as unhas esmaltadas da secretária que pega o pedido médico das nossas mãos, e grita pra todo mundo da sala de espera saber: É para uma colonoscopia?

Se fosse fácil conheceríamos de cor a obra de Guimarães Rosa, e eu já teria tido alta na psicanálise. Não haveria consequência, arrependimento e conclusões dolorosas, mas, sendo assim, os mais velhos não poderiam nos aconselhar. Se fosse fácil não insistiríamos tanto em não ouvir conselhos.

Se fosse fácil menstruação se limitaria à perda de sangue, filhos seriam sobrinhos, uma paixão não teria o poder de nos fracassar tanto assim. Mulheres não trabalhariam o dobro por um salário injusto e uma mão onde ela nunca quis. Alface nos daria prazer, músicas não seriam escritas, poesia não seria palavra. Brancos enxergariam que sua cor é privilégio, e mudanças deixariam de ser sonho – mães negras, finalmente, respirariam em paz.

Se fosse fácil amigo seria parente, e ser bio seria acessível. Depilar não seria padrão, cotas não seriam necessárias, e cada noite vivida, dormida ou acordada, traria uma resposta. Uva passa não existiria, e, desta forma, teríamos mais tempo para refletir sobre outros ingredientes no mês de dezembro.

E, por fim, se fosse fácil eu certamente não seria escritora: exerceria uma profissão que me trouxesse mais prestígio, reconhecimento, e um pouquinho mais de dinheiro – seria médica, engenheira, advogada ou cientista – mas, neste caso, querido(a) leitor(a), não teria sido nada fácil te conhecer: você, certamente, fugiria de mim.

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Drica Muscat tentou de tudo, trabalhou em diferentes áreas, e mesmo quando, de birra, quis rejeitar a escrita, escrever foi a única forma de falar sobre isso. Fundadora do blog dricamuscat.com e vencedora de alguns concursos literários, mora em Paris, onde estuda literatura lusófona na Sorbonne. Gosta de ler mensagens do celular de quem senta ao seu lado no metrô, e tem muita saudade de feijão. É mãe de um gatinho preto, e, segundo uma terapeuta floral, “É doce, mas nem tanto”. Na Rubem, escreve quinzenalmente às quartas-feiras.”