Escreve duas páginas e já fica ofegante. Pergunta aqui, pergunta ali, mas Estocolmo é sempre mais adiante.
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Cada noite é maior a dificuldade para distinguir um fantasma falso de um fantasma de verdade.
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Aos dezoito anos eu já era mais tolo do que jamais seria. Só que ainda não sabia.
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Depois de três tentativas desistiu e assumiu o papel de ex-suicida.
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O predador sexual comprou uma boneca inflável com desempenho regulável e garantia semestral.
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Jogado ao mar, o gato comeu um peixe antes de se afogar.
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É um homem que reconheceria todos os seus defeitos, se tivesse algum.
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Não acredito em versões atenuadas do amor, expurgadas dos desesperos e das lágrimas.
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O amor ainda é a melhor forma de alguém testar os limites de sua tolice.
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Se a poesia não conseguir desenvolver em você pelo menos um início de tristeza, deixe-a para quem a mereça.
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Frases curtas têm a vantagem de às vezes conseguirem passar sem que as alcance uma crase.
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Pago o preço da idade. Palavras como amor e primavera já não aceitam minha carteirinha de poeta.
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O que tenho a dizer sobre a literatura é que venho lidando com ela há pelo menos seis décadas e de vez em quando posso gabar-me de algum progresso.
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Quando imaginou que eu pudesse estar duvidando de sua glória, o poeta começou a puxar recortes da gaveta, tão velha quanto ele, seu quarto e sua tristeza.
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Mudamos demais: até a gripe hoje nós compartilhamos pelas redes sociais.
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A meia dúzia de recortes que formam minha fortuna crítica definham numa gaveta que há décadas não é aberta.
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A sorte da literatura é que, ao contrário do que imaginei, ela nunca dependeu de mim.
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Eu poderia, sem sair de casa, conversar diariamente com um velho que se diz sábio, se eu me aturasse.
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* Raul Drewnick é jornalista, trabalhou 32 anos no Estado de São Paulo e na antiga revista Visão. Escrevia crônicas para o Caderno2 e para o caderno Cidades do Estadão, além da Vejinha/São Paulo, Jornal da Tarde e o antigo Diário Popular. Escreveu os livros de crônicas “Antes de Madonna” (Editora Olho d’Água) e “Pais, filhos e outros bichos” (Lazuli/Companhia Editora Nacional), além de ter feito parte de coletâneas e antologias. Possui um livro de contos e duas dezenas de novelas juvenis. Na RUBEM, escreve quinzenalmente aos domingos.
Bom dia Raul! Peixe caro esse que custou a vida do gato! Hoje quem está com tristeza atávica sou eu! Não é mulundu. São conjecturas dobre algo mais drástico , quem sabe também dramático, a verdade nua e crua da vida , ida… ida… quem em viver pode dizer que viu a ida? Fique com minha admiração costumeira e abraço.
A vida é um espetáculo pelo qual pagamos caro. O gerente deveria ter isso em mente e aperfeiçoar os números. A alegria precisaria ser mais intensa do que costuma, para que a tristeza não tivesse tanta facilidade de se apossar de nós. Se bem que digam que a tristeza é o bem maior dos poetas. Boa semana, Mariza.