Existe uma frase atribuída ao dramaturgo e poeta inglês William Skakespeare que parece perfeita para comentar o que fomos obrigados e obrigadas a ouvir nas últimas semanas: “O diabo pode citar as Escrituras quando isso lhe convém”. Na tentativa de enganar as pessoas, e apostando no princípio de que nós brasileiros temos um grave problema com a memória dos fatos, as autoridades constituídas abrem a boca com a má intenção de adulterar a história do século 20.

O nazismo alemão foi de esquerda, bradou o capitão que está presidente, quando visitou Israel. Hitler se revirou no túmulo. Já o ministro da Educação, em plena data dos 55 anos do golpe, abriu a boca para dizer que o regime militar do Brasil não foi uma ditadura. O fantasma de Castelo Branco prometeu vir do Além, no mais tardar hoje, para puxar-lhe o pé, antes que o inconsequente faça um estrago nos livros didáticos.

Temos o direito de entender que, sem estofo para fazerem uma autocrítica, essas autoridades aí tentam deformar o entendimento do passado. Não estão preparadas sequer para olhar pelo retrovisor do tempo e aprenderem com a História. Reconhecer erros e defeitos é virtude. Não ficou para qualquer um (a). Alguém tem que avisar a elas que mudar o que já passou é… digamos… uma tarefa impossível. Não conseguirão, nem por decreto.

Das três, uma:

Hipótese A, essas autoridades são absolutamente ignorantes e, portanto, deveriam colocar um zíper na boca para não dizer absurdos; alternativa B, são autoritárias e arrogantes, a ponto de querer mudar o que é imutável, o passado; opção C, têm a estúpida intenção de enganar os cidadãos e cidadãs, que elas não respeitam, cometendo um tipo de crime de estelionato cultural e histórico.

Qualquer uma dessas três assertivas é péssima. É trágica, na verdade. Sobretudo quando levamos em conta que os homens que falaram essas sandices ocupam cargos públicos de extrema importância e são peças-chave que podem determinar o futuro dos brasileiros.

Lembro-me de seu Aglailson. É dono de uma quitanda, aqui perto de minha casa. Eu perguntei e ele me jurou que as laranjas, à venda nas prateleiras do seu estabelecimento, eram doces. “São um mel”. Confiei na sua boa-fé, adquiri as frutas, pois entendo que é covardia quando alguém mente para tirar vantagem da minha falta de conhecimento.

Quando experimentei as laranjas, senti que tinha sido passado para trás. Outro dia, fui novamente na quitanda, reclamei. Seu Aglailson foi objetivo: da mesma forma que eu, ele também não sabia se a laranja, inviolável pela casca, seria doce ou azeda. Ele me respondeu o que eu, de certa forma, queria ouvir.

Lembrei de outra frase de Shakespeare:  “O rosto enganador deve ocultar o que o falso coração sabe”. E comparei seu Aglailson aos políticos, mas ele me deu outra resposta razoável: as laranjas estavam azedas. Não, podres.

(Eu estaria sendo injusto na comparação.)

Depois, em tom jocoso, seu Aglailson questionou: você esta comparando a mim ou as laranjas, com os políticos?

(Fiquei tão reflexivo…)

A enganação descarada e sem pudor tem sido uma prática, justamente por parte de pessoas que esperamos tenham como princípio a ética e a honradez. O fato é que os brasileiros estão descobrindo, a duras penas, que há homens públicos que são piores do que as laranjas azedas vendidas nas quitandas e feiras livres. São piores, pois todas as frutas podres são as primeiras a caírem do pé. Nunca chegam às prateleiras das quitandas.

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Cícero Belmar é escritor e jornalista. Autor de contos, romances, biografias, peças de teatro e livros para crianças e jovens. Pernambucano, mora no Recife. Já ganhou duas vezes o Prêmio Literário Lucilo Varejão, da Fundação de Cultura da Prefeitura do Recife; e outras duas vezes o Prêmio de Ficção da Academia Pernambucana de Letras. É membro da Academia Pernambucana de Letras. Email: belmar2001@gmail.com; Instagram: @cicerobelmar. Na RUBEM, escreve quinzenalmente às segundas-feiras.