Elyandria Silva*

Assim que adentrava a porta grande, que fechava com uma enorme tramela por dentro, e pisava no chão de madeira rangente, o olhar sempre subia primeiro. Paredes de madeira de ambos os lados, não tinha corrimão, os dedos esfregavam as tábuas até que se chegasse ao topo. De noite a grande porta era fechada cedo, e quem chegasse, as visitas, teria que bater com força para que escutássemos lá em cima. Vez ou outra alguém escorregava e rolava alguns degraus, por isso, um dia, o cheiro da cera vermelha, passada a mão, em cada tábua, uma por uma, acabou.

Toda casa fala, além do que se pode ouvir, além do que se pode ver. Alguns compreendem bem sua linguagem de sinais. Eu morava numa casa que tinha uma linguagem multifacetada. Éramos sete: o pai, a mãe, as três irmãs, a avó e um tio, irmão do pai. Dia após dia, o som dos estalos da madeira, o cheiro do feijão cozinhando, os cumprimentos da janela entre minha avó e os vizinhos, a ida e vinda de carros na rua central, o arrastar incessante das cadeiras, os passos que subiam e desciam as escadas, tudo nos tornava personagens ativos em histórias paralelas, muito além da ficção. No meio daquilo tudo quem mais se destacava era a mãe, embora estivesse ausente a maior parte do tempo. Porque ela nos apresentava aos personagens invisíveis da casa, os quais somente ela enxergava. Ela contava sobre quem não víamos, o que soava assustador e, ao mesmo tempo, divertido e inspirador.

Enquanto a maioria sumia tão rápido quanto chegava teve um que ali, naquele prédio de dois andares, de cor rosa, com a pintura descascada e gasta pelo tempo, decidiu ficar, por muitos e muitos anos. Era o homenzinho de preto. Ele morava conosco. Pensando bem: éramos oito.

Um homem pequeno, franzino, de bigode, sério, bravo, usava sempre o mesmo terno preto, chapéu preto e bengala. Nada falava, nada pedia, pouco mudava o semblante. Aristocrático, só observava. Tinha preferência pelos cantos da casa e, para meu alívio, ele não tinha intimidade com a mãe, o que me tranquilizava um pouco. Mas existia uma ameaça no ar de que ele pudesse manter contato com ela.

Desde o dia em que soube desse morador intruso não fiquei mais à vontade, pois talvez ele nos vigiasse constantemente. Ou será que ia para outros lugares em determinadas horas do dia? “Ele não está mais aqui, sumiu, não o vi mais”, dizia mainha. A curiosidade infantil era abafada pelo medo, porém era um assunto do pai e da mãe, mais ouvia que participava. Apenas os dois decidiriam o que fariam com o homenzinho de preto.

Ele nunca disse quem era e o que queria em nossa casa, nunca pediu desculpas pela invasão, ao contrário, parecia querer ser dono. Hoje chego a pensar que nós éramos os intrusos. Na rua L.M, 271, não existe mais o prédio rosa, uma casa ocupa o seu lugar. Evito passar por aquela rua, é como se o prédio ainda devesse estar lá. Um prédio que nunca deveria ser demolido, por causa de nossas histórias, que se transformaram em concreto com o passar do tempo. Mais de 30 anos se passaram, as perguntas são as mesmas, só que acrescentada de mais uma: o homenzinho de preto ainda mora lá?

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Elyandria Silva é escritora, autora de “Labirinto de Nomes” (Moleskine, 2012), “Fadas de pedra” (Design Editora, 2009, Contos) e de “Um lugar, versos e retalhos” (Design Editora, 2010, poesia). Escreve para o Correio do Povo e tem textos publicados nas coletâneas “Contos jaraguaenses” (Design Editora, 2007), “Jaraguá em crônicas” (Design Editora, 2007), “Palavra em cena” (Design Editora, 2010, Dramaturgia), “Preliminares” (Sesc, 2009, Contos e Poesia) e “Mundo infinito” (Design Editora, 2010, Contos). Na RUBEM, escreve quinzenalmente às terças-feiras.