Eu caminhava debaixo de sol forte no meio de Mianmar, país asiático antigamente conhecido como Burma. Na região predominam os animistas, seguidores de uma religião que atribui espíritos e deuses a coisas e animais, como montanhas, rios, árvores, elefantes.
O guia da caminhada, Chauk, era animista. Assim que começamos a subir ao pico mais alto da área, ele parou e se pôs a orar, ajoelhado. Perguntei-lhe o motivo. Ele pedia autorização ao deus da montanha para atravessarmos o solo sagrado. Obtida a permissão, seguimos em frente. De repente, ele me segurou:
– Sentes a presença de deus? Está aqui, ao nosso redor. Até tocou minha pele.
Me esforcei para sentir o toque divino, mas nada. Percebi o sol, o calor, o vento abafado, o cansaço, o suor. Nenhum deus. Decepcionado, Chauk seguiu em frente. Parou-me de novo duas horas depois:
– É verdade mesmo que não sentes a presença de deus?
– Não sinto, Chauk. Desculpe-me.
Então veio o problema. Eu quis fazer xixi. Virei de lado, pronto para me aliviar, o primeiro pingo tinha caído. Chauk entrou em desespero:
– Não, não, aqui não, eu lhe imploro. Seremos castigados. O solo é sagrado.
– Como que eu faço, então?
– Segura.
– Não aguento mais.
– Segura.
– Peça ao deus para me liberar, por favor.
Chauk ajoelhou, ergueu as mãos. Falou com tristeza:
– Sinto muito. Deus não permitiu. Aqui, jamais.
– Então vamos voltar depressa.
Desci correndo. A cada impacto das botas no chão o aperto duplicou. E ainda faltava uma hora para chegar ao banheiro. Não suportei a pressão. Pedi desculpas ao Chauk, pedi desculpas ao deus, pequei. Pequei em cima de umas plantinhas quase sem folhas de tão secas. Salvei-as da morte. O pequeno deus que as habitava devia até me agradecer.
Chauk ficou bravo comigo. Para amenizar, abri uma barra de chocolate, dividi-a com ele, que nunca havia experimentado cacau. Adorou. Dei-lhe minha outra barra. Chocolate lhe fez bem. Ficou falante outra vez. Jogou um pedaço para o deus da montanha e me contou que eu tinha sido perdoado. Ave, chocolate! É uma doce penitência para quem fez xixi em deus.
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* Luís Giffoni tem 25 livros publicados. Recebeu diversas premiações, como do Jabuti de Romance, da APCA, do Prêmio Nacional de Romance – e de Contos – Cidade de Belo horizonte, Prêmio Minas de Cultura – Prêmio Henriqueta Lisboa. No momento trabalha num romance que viaja pela América do Sul. Na RUBEM, escreve quinzenalmente aos sábados.
Suas narrativas, dom Giffoni, são um deus nos acuda, com chocolate ou não. Eu leio, feito um deus inconformado, tudo daqui, do lado de fora da tela do PC. E gosto do que leio.
A irreverência do título se torna hilária no decorrer da história! Ri muito e de muito bom grado! Difícil ou impossível fazer o reverente guia entender que a onipresença divina englobaria o xixi, mas os deuses animalistas não devem compartilhar da onipresença , terão suas idiossincrasias, iras ou preferências , e serão subornáveis como os seres que os reverenciam sempre fazendo-os ou os crendo muito a suas imagens e semelhanças! Bexiga aliviada, oferenda aceita, contrição devida é pecado perdoado! E eu aqui quase fazendo o mesmo de tanto rir do seu aperto e da razão dele!