Sentava-me onde nesta mesa? Isto, já não me lembro mais. O que me rende uma dose de, ainda que passageiro, desespero, se não pela desmemória, pelo fato da impossibilidade total da volta. Mas não é apenas isso – é também outra coisa: em qual quadrante dessa pequena mesa de cozinha eu me sentava quando estava acompanhada, em um jantar tardio à base de esfihas, em um café da manhã num final de semana, em uma lasanha congelada compartilhada? Tinha muito de agradável, até de interiorano, estar em um cômodo aberto para um pátio; e mesmo que esse espaço fosse deteriorado, estreito, havia a impressão de se estar em uma casa segura, térrea.

A claridade que se derramava pela porta de vidro da cozinha rebatia as paredes muito brancas. A mesinha era muito simples, laqueada de branco, sem toalha, limpada com Veja. As três cadeiras, de metal, eram mais parecidas com espécies de bancos, com leve encosto, revestidas de almofada de capa laranja de couro falso. Caso não me falhe a lembrança, nunca foram ocupadas todas de uma vez. No centro de uma das beiradas de seu retângulo, encostada à parede de tijolos repintada, havia uma fruteira também de metal, recortada em desenhos abstratos, dispondo em seu interior frutas de pano, além do limão falso que fora algum presente.

Aparentemente belos os dias nos quais essas peças me acompanharam em uma designação cotidiana de horas e momentos variados, dúbios, com aquele ar de aconchego de casa pequena, de rancho citadino, apetrechado com os víveres e viveres essenciais – e nada mais além dessa simplicidade era preciso; ao menos pela duração pela qual os dias transmutaram-se rapidamente em anos. O tempo criou a virtude daquelas peças no momento exato em que elas aconteciam, em que delas transcorria a vivência da casa de caboclo daquela minha existência.

Sem muita desenvoltura eu me ocuparia de pensar que cerca de quatro anos é o suficiente para um ciclo se encerrar; e ainda muito menos de considerar que, dentro em alguns anos, talvez não só aqueles móveis não estariam mais comigo, como decerto seriam dados a outrem. O que não atinei, à época em que me trouxeram de boa vontade, foi que isto já era pensado como provisório, e ilusório foi o esboço permanente que fui criando involuntariamente no decorrer de seu uso, não perpétuo.

De modo que, ao ver esta fotografia que me chega não às mãos, mas à tela, verifico que me dói um tanto ver o meu no alheio. Não creio que seja um sentimento egoísta, de pose desmesurada, o que me acometeu. Foi um golpe rápido, estranho, uma olhada não ponderada, mas atônita e a procurar algo que não se pode mais encontrar, ou que não se pode bem entender o sentido – muito embora ele se sustente como muito claro, claríssimo. Dadas as devidas diferenças, foi algo como a sensação, e a reação, que Jorge, personagem do romance Iaiá Garcia, teve ao ler em carta que sua amada tinha se casado. “O casamento de Estela era a seu ver um absurdo; mas após os intervalos de dúvida, a realidade apossava-se dele.”, diz Machado. Tudo isso porque vi minha mesa de jantar e minhas antigas cadeiras, numa foto qualquer, em uma cozinha que não podia mais ser a minha.

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Elisa Andrade Buzzo é doutoranda no programa de Estudos Portugueses e Românicos na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL), mestre em Estudos Brasileiros também pela FLUL e graduada em Jornalismo pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Publicou os livros de poemas Notas errantes (Patuá, 2017), Vário som (Patuá, 2012 – finalista do Prêmio Jabuti 2013, na categoria Poesia), Canción rectrátil (La Cartonera, 2010) e Se lá no sol (7Letras, 2005), dentre outros. Parte de suas crônicas veiculadas no site Digestivo Cultural (www.digestivocultural.com) foi reunida até o momento em duas antologias: O gosto da cidade em minha boca (Patuá, 2018) e Reforma na Paulista e um coração pisado (Oitava Rima, 2013). Na RUBEM, escreve quinzenalmente às terças-feiras.