Apenas alguém sozinho, de cobertor nas pernas, lendo um romance russo, ou algum tipo de canibal discreto, concentrado em seus mórbidos trabalhos? Alguém que toda noite recolhe para o armário os delitos do dia, ou justamente, porque é noite, sai a passeá-los? Quem é você na noite alta? Quem? Alguém que não dorme, por gosto e por hábito, e que, se outro alguém observasse, por uma fresta ou câmera secreta, encontraria apenas um perfil de caule penso sobre um livro, durante horas? Ou, quem sabe, alguém que sonha com frequência, esparramado na cama, contente, embalado pelo ir e vir do mar? Quem é você na noite alta? Alguém de rosto medonho, todo engruvinhado, transtornado de revolta, murmurando uma praga? Ou ainda, quem sabe, o contrário, um sorriso de Buda, a paz em transparência boiando numa flor de lago? Quem? Um corpo ajoelhado, apequenado, apagado no escuro, mal contendo um soluço, tremendo? Ou talvez alguém descalço, dançando para os seus gatos, pensando um poema em voz alta, escrevendo uma carta interminável, ou qualquer outra loucura mansa? Quem é você na noite alta?  Alguém sempre acompanhado, enroscado em outro alguém, numa mesma sorte e num mesmo sonho? Alguém que festeja o próprio corpo e os regozijos que ele dá, ou alguém jogando xadrez com a morte, insistindo nalguma ronda obsessiva, ou remoendo sem ruído uma saudade, ou longe do centro nas circunvoluções do labirinto? Quem? Quem é você na noite alta? Um cego lendo uma pele proibida, alguém resolvendo um dilema decisivo, ou uma sombra se rojando, camuflada, fugitiva? Alguém que espera e vela, ou alguém acampado numa esquina, angariando vantagem para a surpresa do assalto, ou quem sabe não, nenhuma emboscada, nenhuma espera, só uma paisagem de pântano, com cachos de orquídeas brancas manchando a treva? Quem? Quem é você na noite alta?

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Mariana Ianelli é escritora, mestre em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, autora dos livros de poesia Trajetória de antes (1999), Duas chagas (2001), Passagens (2003), Fazer silêncio (2005 – finalista dos prêmios Jabuti e Bravo! Prime de Cultura 2006), Almádena (2007 – finalista do prêmio Jabuti 2008), Treva alvorada (2010) e O amor e depois (2012 – finalista do prêmio Jabuti 2013), todos pela editora Iluminuras. Como ensaísta, é autora de Alberto Pucheu por Mariana Ianelli,  da coleção Ciranda da Poesia (ed. UERJ, 2013). É autora dos livros de crônicas Breves anotações sobre um tigre (2013), Entre imagens para guardar (2017), Dia de amar a casa (2020), Prazer de Miragem (2022) e Turno da Madrugada (2023), todos pela editora ardotempo. Na RUBEM, escreve quinzenalmente aos sábados.