Usamos dizer que o mundo fica mais pobre quando vai embora um grande artista, mas, dado o nosso grau de miserabilidade, às vezes dá mesmo é um alívio por certas almas grandes já não circularem aqui embaixo. Penso em Hilda Hilst, que estaria hoje com 91 anos. Daqui a menos de uma semana, completam-se 17 anos desde que ela zarpou para Marduk. Penso na cronista que ela foi, louca de lúcida, escandalizando os leitores do Correio Popular de Campinas no começo dos anos de 1990.

Hilda não desistia, bradava até trair seu pessimismo, não se conformava, ia até a crônica revolver o balaio das sordidezes humanas para lhes fazer subir o cheiro bem na hora em que alguém se debruçasse ali. Funcionava. Uma gente chocada escrevia para o jornal. Hilda apostava em doses cavalares de espanto explícito para tentar acordar a alma do leitor, como numa ressurreição por eletrochoque.

Venha cá ver o país como fede, pornograficamente faminto, ostentando seus revólveres, suas malas cheias de dinheiro e seus esquadrões da morte. Vamos ver até onde o leitor aguenta. Furiosa, a cronista quer ferir pelo riso ácido se é que a dor do horror já não fere nem comove. Quer ser repugnante, quer ser escabrosa, e tão repugnante, tão escabrosa, a ponto de provocar a nostalgia da beleza.

Acontece que fomos e continuamos a ser levados a níveis de repugnância cada vez mais baixos e, às podridões de 1990, juntaram-se incontáveis e inomináveis outras que, no fundo, como reação ao nojo, ou, mais do que ao nojo, como reação à loucura muito próxima, acabam nos provocando é a nostalgia do esquecimento.

Então aqui vai este bilhete para você que é escolada em transcomunicação. Algumas notícias atualizadas do homo maniacus para você, Hilda, onde quer que você agora se ocupe de refulgir na infinita escuridão cósmica:

Atiradores aleatórios no topo de árvores não estão mais apenas dentro de uma página de Hermann Hesse. Lori Lamby também já andou passeando fora do seu caderno rosa e a mulher do verdugo desceu do palco junto com a turba canibal. O teatro de Nelson Rodrigues voltou a ser destaque nas livrarias. A poesia de Primo Levi pela primeira vez publicada no Brasil também tem tido boa saída. E você nem pode imaginar, nem eu quero lhe contar, o que tem acontecido com os bichos no nosso antiparaíso verde-amarelo, os bichos, os poetas, os artistas. Quantos já enlouqueceram e quantos mais andam mal pendurados pelas bordas. Um quadro de Bosch espetacularmente contemporâneo. Mas você já não pode ver nada disso com os próprios olhos. Que bom. Que sorte a sua, Hilda.

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Mariana Ianelli é escritora, mestre em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, autora dos livros de poesia Trajetória de antes (1999), Duas chagas (2001), Passagens (2003), Fazer silêncio (2005 – finalista dos prêmios Jabuti e Bravo! Prime de Cultura 2006), Almádena (2007 – finalista do prêmio Jabuti 2008), Treva alvorada (2010) e O amor e depois (2012 – finalista do prêmio Jabuti 2013), todos pela editora Iluminuras. Como ensaísta, é autora de Alberto Pucheu por Mariana Ianelli,  da coleção Ciranda da Poesia (ed. UERJ, 2013). É autora dos livros de crônicas Breves anotações sobre um tigre (2013), Entre imagens para guardar (2017) e Dia de amar a casa (2020), todos pela editora ardotempo. Na RUBEM, escreve quinzenalmente aos sábados.