Agora essa infestação de armas numa gigantesca barbárie autorizada. É o polícia que hoje abertamente se excede ou se antecipa, é a adolescente de classe média toda paramentada treinando tiro, é o homem louco de raiva voltando equipado à lanchonete para nunca mais atrasarem seu pedido. São os monstros felizes que atiram para o alto como que produzindo seus próprios fogos de artifício. É a tentação na gaveta de casa para o filho deprimido, é um bem guardado no cofre do velho assombrado por bandidos, é a solução final que o nazista saca da cintura, por cima do muro do vizinho, o cala-a-boca, o ultimato, o argumento de autoridade, o elemento surpresa da desforra do garoto que mal atravessa o portão da escola já vai abrindo a mochila. Fetiche do presidente, dos filhos do presidente e de mais de um país de gente doente, que gosta de caça, de ameaça, da farsa de autodefesa e do embuste chamado bala perdida. Agora isso, quinze anos depois da campanha do desarmamento, que recolheu mais de quatrocentas mil armas de fogo pelo Brasil, entregues de boa-fé, numa resolução massiva, histórica, de gente que se desfazia de seus motes assassinos, quinze anos passados e agora temos um decreto que permite a cada cidadão a posse de até quatro armas, o dobro do que lhe pode caber nas próprias mãos. E temos o tempero do ódio servido fresco todo dia, a excitação da energia do disparo, uma espécie de diabólica autonomia de nos matarmos uns aos outros sem necessidade de polícia ou de bandido. E ainda pistolas, fuzis, escopetas, bazucas coloridas e munições plastificadas nas estantes das lojas de brinquedos. Uma infestação de armas e alvos, para (quase) todos os tipos de raiva e medo, para os que não têm nada e para os da elite, para o luxo da caça esportiva e para quem só está na lida, também para o bebê que nem queria, nem pretendia, mesmo assim tomou aquela estranha coisa fria entre os dedos, para ver o que era e como lhe dar vida.
__________
* Mariana Ianelli é escritora, mestre em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, autora dos livros de poesia Trajetória de antes (1999), Duas chagas (2001), Passagens (2003), Fazer silêncio (2005 – finalista dos prêmios Jabuti e Bravo! Prime de Cultura 2006), Almádena (2007 – finalista do prêmio Jabuti 2008), Treva alvorada(2010) e O amor e depois (2012 – finalista do prêmio Jabuti 2013), todos pela editora Iluminuras. Como ensaísta, é autora de Alberto Pucheu por Mariana Ianelli, da coleção Ciranda da Poesia (ed. UERJ, 2013). Estreou na prosa com o livro de crônicas Breves anotações sobre um tigre (ed. ardotempo, 2013). Depois, escreveu Entre imagens para guardar (ed. ardotempo, 2017), também de crônicas. Na RUBEM, escreve quinzenalmente aos sábados.
Muito bom, Mariana. Cada vez mais seu fã.
Excelente!!! A coragem de dizer belamente as coisas terríveis que muitos fingem não ver ou que consideram inofensivas, e não o são. Vivemos num Pais da impunidade e das coisas precárias e mal-feitas. Uma tristeza, uma desonra.