Uma pequena fábula conta que um jovem prisioneiro na Alemanha voltou a Bonn, poucos anos após a guerra, para se vingar com a vista dos escombros. Mas eis que, no fundo de uma rua, surge uma banda tocando uma marcha militar e o jovem começa a chorar. A fábula é do século passado, tem mais de quarenta anos, o poeta Tonino Guerra a escreveu. Tonino Guerra avisou. Primo Levi também avisou, insistentemente, durante décadas. Que o terror vai sendo gestado em mínimas crisálidas. Que há uma poeira aparentemente inofensiva que amanhã reunirá as cinzas de um futuro. A diáspora dos nazis como uma semeadura de sombras. Por algum tempo eles se entocaram, ocultaram-se sob outros nomes, outras identidades, e foram sobrevivendo com risco de serem caçados. Mas há muito que deixaram suas tocas, com gosto especial de se exibirem em tempos de pandemia, e pouco têm a esconder que já não lhes suba à cara. Alguém diz que avisou, quando tudo e todos se afogam em evidências, mas quantos já não avisavam quando ainda mal varridas as ruínas do pós-guerra. Que era preciso não desmerecer os indícios. Não se fazer de cego, surdo e mudo. Em todas essas coisas reles, esquecíveis, corriqueiras, que só agora prestamos atenção por causa de um vírus, em todas essas coisas comuns e em circunstâncias as mais banais, eles também foram se infiltrando, livres de denúncia, como se irrelevantes. As nossas máscaras obrigatórias, agora, fazem as vezes de mordaça, o protocolo de lavar constantemente as mãos nunca as deixa limpas e faz tempo que já é tarde.
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* Mariana Ianelli é escritora, mestre em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, autora dos livros de poesia Trajetória de antes (1999), Duas chagas (2001), Passagens (2003), Fazer silêncio (2005 – finalista dos prêmios Jabuti e Bravo! Prime de Cultura 2006), Almádena (2007 – finalista do prêmio Jabuti 2008), Treva alvorada(2010) e O amor e depois (2012 – finalista do prêmio Jabuti 2013), todos pela editora Iluminuras. Como ensaísta, é autora de Alberto Pucheu por Mariana Ianelli, da coleção Ciranda da Poesia (ed. UERJ, 2013). Estreou na prosa com o livro de crônicas Breves anotações sobre um tigre (ed. ardotempo, 2013). Depois, escreveu Entre imagens para guardar (ed. ardotempo, 2017), também de crônicas. Na RUBEM, escreve quinzenalmente aos sábados.
“Faz tempo que já é tarde”… Muito tempo.
Bravo!!
😉💐
Linda crônica, Mariana!