Henrique Fendrich 


Às vezes você achará que ela não devia usar aquele tom para falar de certas pessoas: você ficará, digamos assim, chocado. Mas apesar disso, ou por isso, não deixará de ouvir, mais e mais: ela é fascinante.

Rubem Braga

 

Na vida de Marisa Raja Gabaglia, só havia sobrado uma coluna de jornal, que ela assinava no “Última Hora“. E também o direito de chorar, ou, pelo menos, o de gemer. De vez em quando Marisa gemia pela sua crônica. Ela não tinha vergonha de confessar, de rosto limpo, a sua carência de afeto. Seu coração era de cristal, sensível como uma camélia branca. A agressão a feria, o desamor a assustava, a solidão lhe dava uma palidez dos livros de M. Delly. Quando reagia, era como uma criança machucada batendo com os punhos fechados no punhal que a feriu. Sua agressão não passava de uma frágil defesa. Mas assustava.

Aquilo a que o velho Braga aludia eram as impressionantes confissões que Marisa fazia em suas crônicas. Para ela, a coluna era uma janela onde se colocava para ver a banda da vida passar. Ela via, mas também era vista – reparada, cochichada, julgada. Pouco lhe importava, ela sabia que não adianta se encobrir, se vestir de moralismos pequenos burgueses: a verdade arrebenta tudo. E então Marisa escrevia e Marisa expunha todos os seus dramas familiares, dos quais as frases abaixo são representativas:

“Nos padrões de meu pai, que comunga todos os domingos, é mais honesto uma mulher casada ter amantes discretos que uma mulher desquitada ter tido cinco maridos. Meu pai ter vergonha dos meus cinco maridos”.

“Hoje – meu pai – sou eu quem se envergonha de você. Sou eu quem tem vergonha da vergonha que você tem de mim”.

“Minha irmã se fechou na sua concha familiar. Avisou que não há lugar para mim. Minhas filhas, hoje morando em São Paulo, nem sequer respondem às minhas cartas”.

“Me privaram de amor. Foi essa a vingança da família burguesa pela minha sede de ser”.

É uma exposição como poucas vezes se viu na crônica – gênero pessoal e personalista, por excelência. Marisa mostrava a sua mágoa e protestava contra o julgamento (e a condenação) que dizia ter recebido de sua família. Mas para entender a posição de Marisa é preciso recuar um pouco, até o seu nascimento.

 

À procura de uma mãe 

Marisa nasceu em São Paulo no ano de 1942. O acontecimento decisivo, que marcaria a sua vida, se deu quando tinha de cinco para seis anos: sua mãe morreu de tuberculose, aos 36 anos. Em verdade, desde o nascimento de Marisa, a sua mãe praticamente não saiu da cama: “Vivi com uma mãe doente. Mortalmente doente. E alegre. Uma mulher linda, de tranças que o sofrimento precoce encheu de fios brancos”. Mesmo presa à cama, ela passou a Marisa uma imagem de fibra, conformação, fé e alegria. Mas morreu, enfim. E é a própria Marisa, bastante lúcida, que explica o que acontece com quem perde a mãe de forma precoce: “Passa o resto da vida cobrando dos outros que sejam um pouco da mãe da gente“.

Ficou um buraco em sua alma, como se tivesse um braço ou uma perna amputada, e toda a vida ela quis botar um membro humano naquele lugar: “Não deu“, confessa. Seu pai se casaria de novo pouco tempo depois e ela seria mandada para um colégio interno, onde passou a ter as freiras como mães. Ela preferia o internato à sua casa. Aliás, não tinha casa: “Tinha uma madrasta“. A julgar pelos relatos de Marisa, sua madrasta parecia saída dos contos infantis, encarnando todos os estereótipos negativos da sua condição. Sentia-se, na própria casa do pai, uma hóspede incômoda. Era alimentada para que crescesse, mas não lhe davam uma infância. E Marisa era uma menina cheia de espantos, pobre menina rica à procura da rosa azul. Dia e noite, no entanto, estava sentada, em julgamento, no longo tempo de uma educação rígida.

Marisa: perda da mãe foi decisiva em sua vida. 

 

A falsa segurança doméstica 

Era uma quase menina, recém-saída do internato, e acreditava que o casamento era a segurança, que ter filhos e um lar lhe dariam a felicidade sonhada nos tempos do colégio. E saltou então do escuro do casamento sem saber se a piscina estava cheia ou vazia: “Estava vazia. Me arrebentei“. Havia ido morar em Brasília com o marido, que era o seu amigo, o seu pai, o seu tudo na cidade hostil e desconhecida. Pouco depois estava grávida, e voltaria ao Rio de Janeiro. E aí não sabemos exatamente o que sobreveio, pois, apesar de confessional em suas crônicas, Marisa não dá muitos detalhes sobre como jogou tudo para o alto. Apenas sabemos que não queria se acomodar em uma falsa e hipócrita segurança doméstica, e que empreendeu então um gesto de emancipação. Ao que parece, foi a partir de então que decidiu ingressar no mundo do jornalismo. E diz:

Como Fausto, vendi minha alma à voracidade de viver. Rompi com tudo e com a inconsciência das crianças diabolicamente travessas desmanchei meu lar, perdi minhas filhas, fui, como se diz hoje, à luta”.

“Se a violência de romper foi terrível, maior seria a violência de ficar”. 

“Um a um, fui furando os balões coloridos dos meus sonhos doentes”.

“Aos 24 anos rasguei papéis, estruturas, sobrenomes. Diante de um juiz, perplexo, rejeitei a pensão do meu marido. Não podia aceitar dinheiro do pai das minhas filhas e sair com outros homens. Esse era o meu código de valores. Brutal, mas autêntico”.  

Marisa rompeu com a segurança doméstica 

 

Marisa passou a se dedicar com afinco à sua carreira jornalística. Suas atividades profissionais, no entanto, faziam com que tivesse pouco tempo em casa para cuidar das filhas, que, num primeiro momento, permaneceram sob a sua tutela. Mas um dia a filha maior sofreu com uma hepatite, foi para a casa dos avós e não quis mais voltar. A outra filha seguiria o mesmo caminho depois, quando os avós – e Marisa ressalta o papel da sua madrasta – redigiram um documento para que perdesse a guarda e as crianças não ficassem separadas. Para Marisa, não foi abandono, foram circunstâncias da vida, mas suas filhas se ressentiram mais tarde. E ela admitia: “Mãe é quem cria, alimenta, acarinha, fecunda. E não fiz isso com as filhas que pari“.

Esse rompimento com os padrões de segurança, do qual Marisa, por vezes, parecia se orgulhar, esteve muito longe de ter apenas resultados positivos. Marisa lutou por anos contra um processo doloroso de depressão nervosa. As crônicas chegam a mencionar estadas em hospitais, mas não são claras quanto à razão. Ela faz, no entanto, outra confissão, corajosa em sua lucidez:

“Há oito anos fui buscar no álcool a alegria perdida, as filhas perdidas, o lar abandonado, tudo que uma pequeno-burguesa imatura faz aos vinte anos e a sociedade faz pagar, a vida inteira. Meses a fio, bebi para esquecer a culpa de haver rompido com tudo. E tentar lutar contra a mágoa do perdão da família, que nunca recebi”. 

De fato, se ela já tinha problemas familiares antes de separar, as coisas parecem ter se tornado piores depois. “Moça que se desquita não presta”, dizia a sua madrasta.  Imaginem então o que é ter se casado cinco vezes. Apesar da sua independência, apesar da sua coragem, Marisa não deixava de aspirar por uma vida próxima à sua família: “Sonho com a família perdida como se a pudesse recuperar. Sonho com a família como os cegos sonham com a luz”.  E era quando não conseguia, quando seus movimentos na direção de uma aproximação falhavam, que ela fazia demonstrações públicas de toda a sua mágoa.

 

A mãe pródiga à casa torna 

Com a chegada da maturidade, veio à Marisa a saudade doída da casa perdida. No beco da desesperança em que se atolam os filhos pródigos, ela confessou os seus pecados. E tentou se reconciliar. Ao longo das crônicas reunidas no seu livro “Aleluia” (Record, 1979) , percebemos os seus movimentos, a evolução do seu pensamento, até chegar o dia em que decide ligar ao pai, depois de 8 anos de afastamento. Uma estada no hospital também serviu para a aproximar da irmã e das filhas. E então Marisa exultava:

“Nestes quinze dias recuperei minha irmã – doce e linda. O cunhado que sempre amei como pai e como irmão. O pique. Os sobrinhos, tão diferentes. Eu que tinha esquecido a doçura de ser tia. E mais, mais ainda: recuperei minhas filhas” .

“Deixei de ser mãe pródiga e ovelha desgarrada”.

“Papai, eu queria te agradecer – o carinho com que você recebeu meu telefonema, depois de seis meses de silêncio. Você até me chamou de ‘filhinha’. Fiquei tão, mas tão comovida”. 

Marisa buscava a família perdida 

 

Não se tratou da formação de um novo lar, mas, de repente, visitas já eram possíveis, embora esparsas. Um canal para o relacionamento com as filhas era a mulher do seu ex-marido. Sim, porque Marisa se dava muito bem com ela: “Somos, eu e a mulher do meu marido, grandes amigas. E por que não? Ela cria minhas filhas, as meninas adoram ela, ninguém tem grilos, por que então inventar algum?”.

Apesar das aproximações, certamente os relacionamentos familiares de Marisa ainda estavam sujeitos a oscilações e contradições, como é próprio do ser humano. A diferença é que todo mundo que lia sua coluna podia saber em que pé estavam as coisas no seio da família Raja Gabaglia. E esses momentos de sucesso parecem vir acompanhados do seu relacionamento com outro pai – esse, um pai com P maiúsculo.

 

Cristo chegou de estalo

Foi Cristo que chegou de estalo e deu início ao aprendizado de alegria de Marisa – é ela quem confessa. Era a ele que se aferrava quando sentia que não tinha lugar na casa de seu pai. Considerava o Evangelho extremamente simples, capaz de responder à tudo – sobretudo, à sua dor. Mas também aí foi preciso uma reconciliação, pois havia muita diferença entre a ingênua fé da infância de Marisa e a Igreja Católica que descobriu depois do Concílio Vaticano II.

Quando se acertou, quando voltou à casa de quem chamava de Pai, escolheu viver, escolheu experimentar o maravilhoso aprendizado de viver. Sua embriaguez, ah, ela diz, não era mais de álcool, mas de paz. Isso lhe resolvia também o problema da ausência da mãe, pois havia passado a adotar como a sua a de Cristo. Sentia que ele tinha piedade pela criança que ela ainda era, e pedia, com humildade, que a semente da vida lhe fosse mais forte que a semente da morte.

Tenham ou não tenham fé, a leitura diária de um trecho do Evangelho não faz mal a ninguém“, escreveu. Porque, para ela, era de espiritualidade que estávamos precisando, para poder sobreviver em um mundo hostil, alienado, competitivo. Marisa não era voltada meramente para o seu interior, para o seu próprio umbigo. Afligia-lhe também, duramente, a angústia do dia a dia de todos nós.

Marisa na Revista Amiga, edição de 1972 

 

A angústia do dia a dia 

O “sistema”. A pressão do consumo, devoradora, insaciável. As pessoas que são muros e, mesmo sentadas ao nosso lado no bar, nas livrarias, nas salas de espera, estão emparedadas de silêncio. De repente, o ser humano ao seu lado já não é seu irmão. Estão todos fechados em suas cascas, seus ninhos, seus casulos, e todos se olham como se cada um tivesse secretamente uma faca na bota, pronta a ferir, a golpear, a massacrar. Paredes demais e pontes de menos. Tudo é solidão, essa amiga inseparável.

Não vivemos, sobrevivemos, nem desconfiamos que vivemos para esquecer que vamos morrer. Já não há tempo para ver o sol e sentir, por pouco que seja, um cheiro de mar. Somos absolutamente impotentes, desesperadamente impotentes. conformadamente impotentes. São essas as inquietações que Marisa mostra em suas crônicas, ela que estava exausta das surradas frases de amor, das suas desesperadas esperanças, das manhãs sem surpresas, das obrigações sem compensações, e queria saber como viver sem muletas num mundo alienante e agressivo. É um cenário desolador que ela constata e nos revela:

“Você acorda todos os dias à mesma hora, operário. Você espera o ônibus, o trem, ou dirige seu carro. Você vai fazer a mesma tarefa de ontem, de anteontem. De todos os dias, você é operário sim, da monotonia”.

“Todos estão com medo. Medo de perder o emprego, medo de perder o ser amado, medo de ser agredido. Medo de ser rejeitado. Com o medo vem a impotência, a fragilidade, a regressão. A gente vira criança. E não há nada mais doloroso que uma criança assustada, insegura”. 

“Nós somos como moscas aprisionadas no mel dos bens que nos causam ansiedade”.

“Olho as pessoas nas ruas. Elas não entendem nada. Elas abaixam as cabeças ou levantam os braços nos ônibus. Elas não sabem de onde vêm nem para onde vão. Elas têm sede. Uma sede insaciável de segurança, de promessas, de certezas. E se apegam, como crianças sem boia, a tudo aquilo que puder ser um certificado de garantia”.

Mas de que adiantava fazer essas reflexões em uma crônica de jornal? Ah, há muita gente que precisa do que se mostra e se diz na janela. Para esses que se identificam é que Marisa se mostrava. Ela sabia do alcance que tinha e não podia deixar de usar a sua crônica para fazer alertas sobre a vida cotidiana das pessoas. Apontava então, para quem quisesse ver, a falta de sentido do viver, quando ânsia do poder, do dinheiro e do consumo destroem os frágeis valores que as pessoas conseguem construir para si.

 

Poemas, contos e humor

Embora essas sejam as características de suas crônicas mais marcantes, Marisa também escreve muitos contos curtos de amor, seus encontros, desencontros e reencontros – a maioria terminando com um gosto amargo, mas outros com um final surpreendentemente feliz. Muitas de suas crônicas tem uma estrutura que se assemelha a versos, e há pelo menos uma em que se pode falar em versos de fato. Ela preenche o seu livro também com historietas divertidas, casos domésticos, incidentes sociais, pequenas brincadeiras, coisas tão afeitas à crônica, e que deviam agradar ao velho Braga, que fez orelha de mais de um livro seu.

 

Um imerecido ostracismo

O nome de Marisa Raja Gabaglia foi bem conhecido nos anos 70, quando era jurada no programa do Flávio Cavalcanti, além de ter atuado como atriz e ter sido repórter e apresentadora do Jornal Hoje.

Equipe do Jornal Hoje, em 1973. Marisa, à direita. 

 

Sua carreira, no entanto, cairia, para nunca mais se erguer, em 1981, depois que estourou o escândalo envolvendo Hosmany Ramos, cirurgião-plástico, com quem Marisa mantinha um relacionamento há seis meses. Hosmany foi acusado dos crimes de roubo, tráfico de entorpecentes, contrabando e assassinato. Após o caso, e em resposta às críticas da mídia, Marisa escreveria “Um amor bandido”. “Não me apaixonei por um bandido”, dizia. E depois disso,  apesar de mais alguns livros, caiu no ostracismo. Morreu em 2003, de leucemia.

Seus livros de crônicas são hoje absolutamente desconhecidos do público, o que não condiz com a qualidade dos seus textos. Passadas já algumas décadas desde o escândalo, já não há mais quem possa ter motivos para lhe censurar e convém que seu nome seja resgatado e seus textos apreciados outra vez.

 

“Acho graça nos que julgam. Me dá vontade de, como Cristo, escrever na areia as verdades alheias”.

“A família de hoje precisa se abrir. Casar e recasar é um fato normal”.

“Me incomoda isso. Que eu tivesse precisado SER ALGUÉM para ser gostada. É como se a anônima dona-de-casa e mãe de família que eu fui não merecesse amor”.

“Sei que nunca serei alguém. Serei de sobra. E estarei sempre aquém daquilo que sonhei”.

 


Marisa Raja Gabaglia, Aleluia
Record, 1979, 210 páginas


Obras de Marisa Raja Gabaglia:

Milho para a galinha, Mariquinha, 1972
Os grilos de Amâncio Pinto, 1973
Casos de amor, 1975
Meu dia-a-dia, 1976
Aleluia, 1979
O pirol brasileiro, 1980
Meu amor bandido, 1982
Os nós, 1985
O sedutor da bicharada, 1992