O que era aquela garçonnière da Líbero Badaró, do Oswald de Andrade, no centro? Nem conto…

Guilherme de Almeida, Monteiro Lobato, Ricardo Gonçalves, Ferrignac, todos eles devem ter registrado as suas impressões em livro. Mas vou ficar na minha, bocca chiusa não entra muriçoca.

Todos, no clímax da juventude, íamos para o apezinho discutir literatura, política, ouvir música, fazer saraus. Só eu estava ali feito bosta n’água.

Era o mais mais café com leite de todos. Se fosse a bossa nova não seria nem o Tom, nem o Carlinhos Lyra, muito menos o Vinícius. Talvez o irmão caçula da Nara Leão, nada além disso. Comparecia aos encontros porque era protegido do Mário. E não porque era um menino bonito, diga-se logo, mas porque era assistente do mestre nas viagens pelo interior paulista para registrar o folclore. Carregava as malas, os cofos, a máquina fotográfica e os cadernos de anotações.

Seu Mário me pagava em livros e cartas de recomendação. Montei uma pequena biblioteca de literatura francesa e passei a ter assunto para conversar com os modernistas.

Num desses saraus da Líbero passei a discorrer sobre o Blaise Cendrars. Monteiro Lobato, com suas indefectíveis sobrancelhas de ariano torto, gostou dos meus pontos de vista; convidou-me logo para trabalhar em sua editora. Guilherme de Almeida, inspirado pelos vapores poéticos da minha fala, declamou o poema O Albatroz, de Charles Baudelaire.

Oswald não estava na saleta naquele “meu” momento. Ao retornar, como sempre fazia, mudou a história do ambiente. Veio com Daisy, a tão falada Miss Cyclone, de braços dados e às gargalhadas.

Ricardo Gonçalves os interrompeu e pediu que o casal me ouvisse verbalizando os versos de “Prosa Transiberiano”. Segui:

…Do fundo do coração brotam-me lágrimas
Se penso, Amor, na minha amada;
Não passa duma criança, que encontrei
Pálida, imaculada, no fundo dum bordel,
É uma criança, loura, risonha e triste,
Não sorri nem chora;
Mas no fundo dos seus olhos, quando vos deixa beber
Treme um delicado lírio de prata, a flor do poeta.

Foi inevitável que, pela primeira vez na condição de rapsodo, eu declamasse olhando para o fundo dos olhos de ressaca da linda normalista.

Quando encerrei houve um hiato de silêncio. Logo todos prorromperam num klaxon de palmas. Todos menos Oswald. Olhava para mim e Miss Cyclone, como se seu grosso pescoço acompanhasse uma partida de tênis entre Charles Chaplin e Paulette Goddard. Mais tarde serviu absinto a todos os convivas e mandou preparar sumo de laranja para mim, o café com leite.

Resolvi ir me embora depois do evidente ciúme oswaldiano. Quem disse? O homem passou a não mais conversar, mas a palestrar. Voltando-se como um pêndulo para Daisy e eu deitou agressiva falação sobre Breton, Montaigne, Totem e Tabu, Rousseau, o Bispo Sardinha. Tanto falou, exclamou, bufou que, quando todos já estavam hipnotizados, flocos de neve aterrissaram em pleno Centrão.

O obeso poeta abriu as janelas da garçonnière e urrou como um tritão:

– Só lhe interessa o que não é seu!!!

Ergueu-me com facilidade e lançou-me na calçada. Levantei no beliche de casa, transido de frio, e com o livro “Neve na manhã de São Paulo”, de José Roberto Walker, em cima do peito.

Neve na manhã de São Paulo, José Roberto Waker
Companhia das Letras – 368 páginas – Lançamento 29/05.

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* Carlos Castelo é escritor, letrista, redator de propaganda e um dos criadores do grupo de humor musical Língua de Trapo. Na RUBEM, escreve quinzenalmente aos sábados.