Luís Giffoni*
Ebenezer acaba de se aposentar. Setenta anos. Pele enrugada como maracujá murcho. Óculos de grau que escorregam nariz abaixo. Tenta recolocá-los no lugar, as mãos não lhe obedecem. Tremem muito. Na boca, faltam vários dentes. Os que restam mostram cáries, e o tártaro preenche os espaços entre os incisivos. Recebe pouco mais do que o salário mínimo. Veio de Salvador para BH há quarenta anos. Trabalhou em empresas particulares como servente de pedreiro, depois virou vigia, mais tarde operador de “parissiga”.
– Parissiga? – estranhei. – O que é isso?
– Eu ficava na estrada controlando a passagem dos carros com a placa de pare e siga. Era operador de parissiga.
Contribuiu para a Previdência durante décadas. Não progrediu na iniciativa privada. Tampouco conseguiu ser admitido numa autarquia federal, em busca de melhor salário e menos desgaste. É analfabeto. Tem mulher e duas filhas que lhe deram netos, um deles uma pestinha aos dois anos: ao puxar a toalha, quebrou toda a louça que estava em cima da mesa. Ebenezer gosta do menino, mas o prefere longe de sua casa. Os pais são muito modernos, ele confessa, não educam o garoto à maneira antiga, severa, e ele não tem dinheiro para comprar pratos novos.
A casa de onze cômodos que construiu com as próprias economias e a ajuda de um genro empreiteiro, “moço importante, atirado, que consegue obras de até quinze mil reais nos bairros chiques”, essa casa foi desapropriada pela prefeitura que o indenizou com o dinheiro suficiente para comprar outra com apenas cinco cômodos, mas “está bom”: Ebenezer se julga satisfeito de ter onde morar. E levanta as mãos para o céu em agradecimento.
Pergunto-lhe o que achou do afastamento da Dilma, ele demora uns segundos labutando com o pensamento:
– Eu ouvi mesmo falar que estão querendo afastar essa Vilma – percebo que ele aprendeu as táticas evasivas dos mineiros. – Já afastaram?
– Sim, na semana passada. O que achou?
– Dizem que era um moço importante que queria afastar a Vilma.
– Um moço? Ele é mais velho que o senhor.
– Pra mim esse povo é tudo igual.
Ebenezer conta que mora no Pau Comeu e lá tem muito tiro. A rapaziada gosta de “essas coisas”.
– O que quer dizer “essas coisas”? – indago.
– Fumo e pedra – ele diz de lado, para dentro da boca, como se receasse as palavras.
Pedra me remete a Ebenezer, originalmente pedra da ajuda, em hebraico. A curiosidade me domina:
– O senhor sabe o que significa Ebenezer?
– Até aqui me ajudou o Senhor.
Analfabeto, desdentado, doente de Parkinson, operador de parissiga, confunde Dilma com Vilma. Ebenezer. Um brasileiro. Ele me cativa. Sua inocência venceu sete décadas e continua intacta.
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* Luís Giffoni tem 25 livros publicados. Recebeu diversas premiações, como do Jabuti de Romance, da APCA, do Prêmio Nacional de Romance – e de Contos – Cidade de Belo horizonte, Prêmio Minas de Cultura – Prêmio Henriqueta Lisboa. No momento trabalha num romance que viaja pela América do Sul. Na RUBEM, escreve quinzenalmente aos sábados.
Um dos muitos “Zé Brasileiros” que pululam por estas terras de “meu Deus”l inocência ladina, conversa de desconversa, muito valor e luta mais labuta, nenhuma erudição, peritos em carimbar dedão ou assinar em cruz quando necessário, peritos em mascar fumo , palito ou mesmo palha e em acertar cusparada no chão de terra batida, homens de pouca fala que quando pegam o fio da conversa engatam umas falas na outra com intermináveis eeeees para não ceder a vez para mais ninguém ! Gostei mesmo do seo Ebenezer paressiga!