Voltei ao Rio Grande do Sul depois de alguns anos. Porto Alegre é uma cidade agradável, na qual, por conta do trabalho e da literatura (trabalho sem remuneração), coleciono amizades, inclusive recentes. Bia, a quem fui apresentado pela Ione – gaúcha e carioca que se conheceram no Pará –, faz parte da nova leva, mas já chegou esbanjando carinho e generosidade, parece até que nos conhecemos não é de hoje – nem de ontem.

A capital gaúcha vem renovando a área portuária, planejando inclusive erguer prédios residenciais, o que me parece uma tendência. No Rio de Janeiro acontece a mesma coisa, e não é muito diferente o que se fez em Buenos Aires e Montevidéu. No caso de Porto Alegre, já há um espaço, ao lado do Gasômetro (em reforma, no momento), cheio de bares com pontos de observação do pôr do sol. Jaqueline afirma que é o mais lindo do mundo, assim como são sem igual o vinho e o churrasco da terrinha. O carioca defenderá o pôr do sol do Arpoador, o argentino achará um acinte esse destaque dado ao churrasco. Enfim, nossas paixões nos comandam.

Talvez por eu ser mineiro, Luciano e Júlio riram de mim quando, numa parada entre Bento Gonçalves e Porto Alegre, pedi um café, um pão de queijo e, vá lá, uma cuca. Cuca, especialidade gaúcha, tem o mesmo nome de um bolo muito comum no Rio de Janeiro, mas eles não se parecem em nada. Ambos são bons, assim como era bom o tal pão de queijo comido a caminho de volta da serra – bom, mas não o melhor, lugar incontestável da iguaria feita em Minas Gerais. Aproveitando a oportunidade, a globalização do pão de queijo mineiro deve ser estudada, parece um case de sucesso.

Meus amigos gaúchos me indicaram com entusiasmo uma visita à livraria Bamboletras. Lá encontrei livros do Rubem e do Tiago – meus colegas da Rubem e com quem tomei um chopinho de leve –, além de pelo menos um da Mariana, outra da revista. Me senti bem na companhia livresca dos três. E melhor ainda ao saber que aquela livraria ocupou uma antiga igreja. Nada contra as igrejas – quer dizer, as autênticas, não as que servem de disfarce a bancos –, mas, acostumado a ver cinemas transformados em templos, essa insurgência – fato único nesse Brasil desgostoso da cultura – merece aplausos.

O trabalho me levou, vejam só, a Santa Cruz do Sul, uma cidade da qual eu nunca ouvira falar até um pouco antes dessa minha viagem, quando de lá veio à tona a censura ao “O avesso da pele”, livro de Jefferson Tenório, um escritor negro, carioca e com vida acadêmica no Rio Grande do Sul. Uma diretora de escola pública da cidade e logo depois seus iguais em escolas paranaense e goiana viram na história de Tenório uma ameaça à juventude. Os livros estão sempre na mira dos conservadores. Daqui a pouco, a pira queimará uma pilha deles, pois depois do caso Jefferson a censura continuou excitada: o Sesc tem censurado o romance do paraense Airton Souza, “O outono de carne estranha”, vencedor, vejam só a ironia, de seu último concurso literário. Ah, os livros!

Santa Cruz do Sul é uma cidade bonita, tem um igreja gótica impressionante e sua rua central é toda arborizada, um exemplo urbano. Eu e os colegas de trabalho chegamos lá à tarde e corremos para ver a igreja aberta. Íamos comentando como a cidade parecia segura quando à nossa frente nos deparamos com dois ou três carros de polícia. Custamos a entender o que se passava. Eles atendiam à denúncia do conselho tutelar de que havia uma criança sozinha na rua, não sei se mendigando. Pelo que entendi, a cidade está atenta a possíveis abandonos. Pode ser bom, ainda que, na minha avaliação leiga, as viaturas policiais são um exagero e parecem indicar que o que se tem não é zelo pela infância, mas controle sobre ela.

Dormi lá. De manhã, um monte de gente se dirigia à praça. Fiquei encafifado pelo fato de todos carregarem uma “cadeirinha de praia” (há uma grande empresa produtora na cidade). Depois percebi que havia um palanque e julguei que fariam uma assembleia – uma estranha assembleia na qual os militantes ficariam sentados. Desejei que fosse o movimento de professores contra a colega censora. Uma senhora me esclareceu que os funcionários públicos exigiam melhores salários. Agradeci a informação, dei meu apoio à causa, mas saí de lá torcendo para que a tal diretora e perseguidora da literatura não levasse o dinheirinho a mais. Ela não merece. Quanto a mim, mereci degustar um churrasco na cidade, uma coisa dos deuses.

Ao deixar Porto Alegre, peguei um Uber dirigido por um rapaz jovem, que se mudou de Uruguaiana para a capital e ganha a vida como motorista. A conversa fluiu e, por sorte, encontrei um crítico de toda essa direita enlouquecida que ainda atua no país. Em seu perfil no aplicativo, ele diz gostar de filosofia, literatura e música. Imagino estar se sustentando desse modo, mas de olho numa outra vida. Desejo-lhe sorte. No voo, a mulher sentada ao meu lado – não sei se gaúcha, mineira, carioca ou extraterrestre –, leu a viagem toda. Título do livro: “A coragem de ser imperfeito” – na sinopse disponível na internet, está escrito: “aceite a sua vulnerabilidade e ouse ser grande”. Ah, os livros!

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Alexandre Brandão, mineiro que vive no Rio de Janeiro, tem livros de contos, poesia e crônicas. Neste caso, “No Osso: crônicas selecionadas” (Editora Cais Pharoux), de 2012, e “O bichano experimental” (Editora Patuá), de 2017. As crônicas de “O bichano experimental” foram, em grande parte, escritas para a RUBEM. Alguns de seus contos e poesias podem ser encontrados nas revistas eletrônicas Mallarmargens, Germina, São Paulo Review, além do jornal Rascunho. Na RUBEM, escreve quinzenalmente aos domingos.