Espero no ponto o 409 ou o 410. Se há algum leitor que me acompanhe e que, me acompanhando, retenha os detalhes das minhas crônicas, ele ou ela saberão que essas são as linhas de ônibus habituais para o meu trajeto casa-trabalho-casa.

Depois de me acomodar em um ou outro, saco um livro da mochila ou chafurdo no celular ou simplesmente aprecio a paisagem e, não demora muito, desço na primeira parada da Lapa, ando uns 500 metros e chego ao trabalho. Costumava alterar o jeito de voltar para casa, em vez de ônibus, tomar o metrô, mas a tarifa deste está pela hora trágica da morte sofrida e súbita, três reais mais cara que a do ônibus. Pasmem, o metrô tem o mesmo preço do trem que circula entre a Central e o subúrbio, ou seja, a turma que mora longe, que ganha menos em trabalho pouco qualificado, gasta o mesmo que os menos desafortunados e os ricos. Somos uma nação cruel. Seja como for, tenho voltado de ônibus para casa, opção, aliás, melhor. Dele se pode ver gente, assim como no metrô, mas também paisagem, um privilégio de quem vive na cidade que, de tão bela, faz cair o queixo até de um Noel Rosa e arranca lágrima dos nem um pouco emotivos.

Não era nada disso que gostaria de dizer, me perdi logo no início da crônica, mas, uma vez dito, dito está. Peço a compreensão de quem passou pelas linhas anteriores e uma segunda chance. Venham comigo, por favor.

Espero no ponto o 409 ou o 410. Antes de um deles chegar – será o 410 –, encosta o 309. A viagem nessa linha leva mais ou menos uma hora e meia – num percurso, entre o terminal Alvorada, na Barra, e a Central do Brasil, com mais de 70 paradas – e nela vão verdadeiros estrangeiros. Digo isso porque a pessoa que toma o coletivo na Barra – muitas vezes vindo do Recreio, Curicica, Vargem Grande, Guaratiba, sei lá de onde – não conhece muito bem São Conrado, Gávea, Jardim Botânico, Humaitá, Botafogo, Flamengo, Glória e o Centro, os bairros pelos quais o ônibus passa. Essa parece ser a situação do casal despejado na rua ao saltar do ônibus. A senhora logo sobe na calçada, o senhor, não, ainda que fique coladinho ao passeio. Ele olha abismado para um lado e outro. Vê um supermercado ali, um banco aqui. Uma perfumaria à esquerda, uma lanchonete à direita. Experimenta o mundo como se acabasse de chegar a ele. Já a senhora excede em objetividade. Olha para cima, olha para baixo e pronto: aponta o sentido da praia, para onde começa a caminhar. O senhor ainda dá umas cabeçadas antes de segui-la.

Fico espantado por não terem tirado um celular do bolso e consultado o mapa ou descido com a lição tomada, numa consulta prévia feita no percurso que, da Barra a Botafogo, deve ter consumido mais da metade do tempo total da viagem ponta a ponta. Talvez não tenham intimidade com o aparelhinho que controla a nossa vida, o que duvido. A julgar pelo jeito aéreo do senhor, se ele tivesse um, mesmo folheado a ouro, o teria tirado do bolso e, na rua, não na calçada, começaria a fazer a consulta. Um homem daquele, que faz pouco caso com atropelamento, não há de temer trombadinha, nem os de terra estrangeira. Ou teme tanto que nem saiu com o celular de casa. Enfim, o mistério: por que não fizeram uma consulta rápida e eficiente?

Vão pelo faro da mulher, é tudo que sei. Meu 410 chega, entro, pago, consigo me sentar, saco o livro do Leonardo Almeida Filho, “Berro” (Editora Patuá), e começo a lê-lo para, num segundo, me encantar com a engenharia amorosa usada por meu amigo na construção de seus contos – já lhe deram um prêmio? Pois deem. Preso à leitura, nem olho o Aterro, ou seja, abstenho-me da paisagem. Se não desfruto da beleza, poderia ter optado pela rapidez do metrô, embora, claro, de ônibus economize três pratas, o que, na atual circunstância, faz diferença.

Depois de descer do ônibus e antes de me ajeitar na mesa de trabalho, volto a pensar no casal e, a partir dele, nas formas que foram inventadas para se localizar em território desconhecido. Antes da facilidade do mapa eletrônico, havia o mapa em papel – não os consulto com facilidade –, a bússola – essa estranha, que fala mandarim, não deve levar ninguém da Torre Eiffel ao Museu Rodin ou de Santa Cruz a uma determinada rua de Botafogo –, e, antes deles, as estrelas – que foram apagadas pelas luzes das cidades. A evolução da humanidade pode ser vista a partir das ferramentas desenvolvidas pelo ser humano a fim de dominar o território e aprender a ir e voltar. No meu caso, no tempo anterior à traquitana eletrônica, sempre me situei apostando na intuição, igual ao casal. Orgulhoso, nem perguntar a um estranho eu perguntava, o que já gerou conflito aos que, com espírito científico, caminhavam comigo. Sempre cheguei ao destino, não sei se pelo melhor caminho, mas isso não importa.

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Alexandre Brandão, mineiro que vive no Rio de Janeiro, tem livros de contos, poesia e crônicas. Neste caso, “No Osso: crônicas selecionadas” (Editora Cais Pharoux), de 2012, e “O bichano experimental” (Editora Patuá), de 2017. As crônicas de “O bichano experimental” foram, em grande parte, escritas para a RUBEM. Alguns de seus contos e poesias podem ser encontrados nas revistas eletrônicas Mallarmargens, Germina, São Paulo Review, além do jornal Rascunho. Na RUBEM, escreve quinzenalmente aos domingos.