Receita de um delicioso sotaque: pegue o local onde nasceu, misture com onde vive e junte com quem conviveu. Coloque fatias generosas do seu nível educacional e classe social, sem esquecer uma sutil dose de fatores individuais como fisiologia e até personalidade. As porções, pitadas e parcelas de cada ingrediente são a gosto. Posso garantir que seja você um chef experimentado ou não, o resultado é sempre único e no ponto certo. E atenção que essa refeição está indisponível em restaurantes. Impossível comprar pronta.

Ao contrário da própria língua, sotaque é algo que – ainda bem – não aprendemos no colégio. Uma daquelas coisas que todos nós reconhecemos, mas temos alguma dificuldade em definir (até a origem da palavra é incerta). Som, ritmo e expressão, tudo junto e misturado gera esse aspecto diferenciador do nosso discurso. Ouvimos, reproduzimos, mantemos, adaptamos, mudamos conforme um processo particular de cada pessoa e sociedade que é muito complexo de explicar.

Em relação ao português, uma formosura de diversidade, os nossos sotaques elevam esse encanto à enésima potência. Cada um dos nove países da CPLP dá seu contributo para a rica culinária fonética lusófona. Mesmo sendo um fenômeno individual, dentro de cada país, temos regiões e cidades com um modo de se comunicar bem característico.

Até chegar em Portugal, não dava muita bola para o assunto. Ao chegar, meu interesse sobre o tema floresceu. E não digo apenas em função das variedades do país (a felicidade ao reconhecer a fala de alguém do Porto ou dos Açores, por exemplo), mas também um acordar aos diversos sotaques brasileiros.

No Brasil, só percebia a diferença quando viajava para outro estado. Ou seja, habitava bolha do carioquês e nem notava. Em Portugal, um mini-Brasil onde as pessoas estão mais próximas, provo os diferentes sons de forma muito mais intensa e constante.

O sotaque mesclado dos que já moram há bastante tempo aqui vale a pena experimentar. Outra iguaria imperdível é a habilidade de algumas crianças, filhas de pais brasileiros, que conseguem falar com os dois sotaques. Em casa, sons do Brasil, na escola, visando maior integração com os amiguinhos, trocam para o português europeu.

Essa história toda sempre abre meu apetite. Meus ouvidos estão cheios de fome, prontos para encarar um belo sotaque (à portuguesa, à brasileira ou até baralhado).

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Marcelo Tacuchian é engenheiro naval nascido no Rio de Janeiro. Sempre usou números e planilhas eletrônicas para escrever. Pensava que era a única forma de se exprimir criativamente. Tenta agora fazer uso de palavras e editores de textos. Na sua busca por mudanças, embarcou para Portugal onde vive atualmente e se esforça para aprender a desafiadora língua local.

A participação em diversas oficinas de escrita o incentivou a divulgar seus textos. Algum de seus contos estão publicados em coletânea e tem um livro individual de crônicas (Crônicas do (Re)descobrimento. Editora Metamorfose 2022).