Eu não tenho certeza, porque nem de mim sei cuidar.

Para ser mãe tem que saber se esquecer. Eu, egoísta, penso o tempo todo em mim. E a dor de barriga que vem junto de não saber. Barriga essa que nunca carregou ninguém.

Mãe tem olhos de amêndoa doce, que refletem bondade até o momento em que mexem com sua cria. A partir daí, a bondade vira ordem, e a doçura, justiça.

O que era mulher vira bicho.

Mãe não olha – mãe enxerga de frente, costas, através.

Mãe, de todos os seres que existem, é o único que vê o infinito na forma de uma criança.

Eu, enquanto isso, enxergo o meu umbigo, e acho que poderia perder uns 5 quilos.

Um dia minha mãe encostou o carro na favela, e disse: agora desce com todas essas coisas e esses brinquedos, e dá na mão dessas crianças que não têm metade do que você tem. Um dia minha mãe me deixou de castigo, e me pediu desculpas depois. Um dia minha mãe estava chorando, eu perguntei por que, ela disse que tinha se emocionado com qualquer coisa que não importava muito. Um dia minha mãe usou todo o dinheiro que não tinha para me dar uma boneca que eu sonhava em ter. Um dia eu fiz alguma barbaridade, minha mãe levantou a mão pra fingir me dar um bom tapa e, ao olhar pra minha cara de pelo amor de Deus, me abraçou e me beijou tão forte, que eu ainda sinto.

Minha mãe fez todas as lembrancinhas das minhas festas de aniversário com as próprias mãos, testou incontáveis receitas para açucarar a minha infância, e escondeu com seu próprio corpo perigos que poderiam me assustar. Minha mãe botou minhas roupas brancas para quarar, e me ensinou a nunca trazer pra casa “nada, nem uma agulha” que não fosse minha. Minha mãe me ensinou a colher flores e arranjar vasos para dias importantes. Meu olho foi pintado pela primeira vez pela minha mãe e, neste mesmo dia, ela me encorajou a ir num bailinho da escola que eu não queria ir, pois achava que eu era feia demais pra sair de casa.

Mãe mente pelo bem, se culpa pelo bem, abre mão de tudo pelo bem, e vive pelo filho, mesmo nas horas em que queria morrer só um pouquinho, pra descansar de ser mãe.

Eu vivo para conseguir ser reconhecida de alguma forma, por alguma coisa, por mim mesma. Por egocentrismo, ou talvez até por um futuro filho, que eu não saberia cuidar tão bem como a minha mãe cuidou de mim.

Eu tenho medo de não ser amada, e mãe faz tudo o que pode sem esperar nada de volta. Aliás, mãe espera, sim – espera, sem nenhum espanto, choros e berros já tão quotidianos, de filhos que não aceitam ser cuidados, mas não viveriam sem os mesmos cuidados. Mas a mãe aceita. Mãe não pensa duas vezes: ser mãe foi a sua mais lunática e mais certeira decisão.

Ontem eu estava na seção de frutas do supermercado, e peguei uma nectarina na mão. Senti o cheiro da minha mãe. Minha mãe tem cheiro de fruta madura, frutas secas, especiarias, poção mágica. Minha mãe tem cheiro de roupa bem passada, batom em dia de festa, laço de fita, porcelana escolhida a dedo. Minha mãe tem cheiro de dia de chuva e nós duas em casa, catando palavras pra distrair o tempo, segurando uma xícara de café. Minha mãe tem cheiro de protetor solar, sala de espera, material escolar, beijo na testa, xarope cor-de-rosa, sopa de letrinhas, esmalte meio nude.

Fui me curvando em mim mesma, segurando a nectarina contra meu ventre, com os olhos e a garganta ardendo, sedenta pelo colo da minha mãe, pelas mãos dela tirando meus fios de cabelo encharcados e enroscados nas lágrimas do meu rosto, me dizendo: filha, isso é passageiro. Não tem nada como um dia depois de uma noite.

E, aí, como todas as mães, minha mãe diria para eu levantar e secar o cabelo para não ficar resfriada, mandaria eu trocar a camisola por algo mais quente em pleno verão, e passaria às três da manhã no meu quarto para saber se eu dormia (ela com certeza não, mas ela não se importaria).

Mãe tem astúcia de avó, formato de lobo, dente de leão.

Mãe vive a culpa, a dor, o sono, a exaustão, a confusão, a falta dela mesma por ter dado tanto de si para um ser que ninguém sabe no que vai dar – a mãe sabe: se não der em nada, ela dá tudo o que tem.

Eu não tenho certeza, continuo refletindo, enquanto encaro a mim mesma no espelho, de cabelo molhado, camisola tão curta que arrepiaria todos os poros da minha mãe, e a alma tão imatura sobre quem eu sou e o que eu quero.

Mas mãe, nem sabe o que é questionar. Mãe não sabe de nada dessas coisas para as quais se demanda tempo.

Mãe só sabe adivinhar o que aconteceu, acontece e vai acontecer com o filho sem que ninguém precise falar nada e, a partir disso, usar toda a feitiçaria que só mãe sabe fazer, para proteger a cria que nunca vai saber se cuidar.

Até virar mãe.

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Drica Muscat tentou de tudo, trabalhou em diferentes áreas, e mesmo quando, de birra, quis rejeitar a escrita, escrever foi a única forma de falar sobre isso. Fundadora do blog dricamuscat.com e vencedora de alguns concursos literários, mora em Paris, onde estuda literatura lusófona na Sorbonne. Gosta de ler mensagens do celular de quem senta ao seu lado no metrô, e tem muita saudade de feijão. É mãe de um gatinho preto, e, segundo uma terapeuta floral, “é doce, mas nem tanto”. Na RUBEM, escreve quinzenalmente às quartas-feiras.