
The echo bounces off me
The shadow lost beside me
There’s no more need to pretend
Cause now I can begin again
The beginning is the end is the beginning – Smashing Pumpkins
Minha mãe morreu.
É um começo duro, como deve ser. As primeiras linhas de uma nova história precedem o término de outra. Assim é no texto como na vida. A partir daí, o desafio da página em branco se instala como um inseto que zune em seu ouvido à noite. Como escrever uma nova existência a partir de uma única palavra? Luto.
Minha mãe se foi numa terça-feira. Dia de sol, que nem meu pai. Foi enterrada na quinta. Na quarta-feira, quando os ritos de passagem foram concluídos, uma onda me bateu direto na cara. Pensei: “Ela morreu mesmo.” E chorei. Desde que a ficha caiu, rearrumo os pensamentos e a mobília da casa. Porque a vida segue. Os escândalos na televisão se sucedem, os boletos chegam e a operadora de telefone dá outra dor de cabeça. Como se normal fosse, porque é.
Minha mãe tinha Alzheimer. É uma doença que desliga a vida da pessoa aos poucos. As lembranças, as funções corporais, cada uma, em algum momento, se vão. Apaga aquilo que Ortega y Gasset definiu como o que forma uma pessoa: não a natureza, mas sua história. Como uma leitura, não queria que terminasse, embora soubesse que estava nas últimas páginas. O motivo era bem diferente. Ao contrário de um livro, que posso reler, há coisas que se fundem com o que se está ao redor, e nunca retornam àquela forma original. É como a vida se lê. Como o filósofo espanhol afirmou: “A vida é o que fazemos e o que nos acontece.”
Ouço “Falling ashes” do Slowdive enquanto deixo meus dedos sem pressa sobre o teclado. Não sei como terminar, somente que será breve. Fui ao banco mais cedo e lembrei de “Cai o pano”, de Agatha Christie. Não o leio desde a adolescência, mas deixou uma marca em mim. É uma trama que lida com mortalidade. Hercule Poirot, o grande detetive, morre. Antes disso, sabendo de seu destino, ele mata um criminoso que não poderia trazer à justiça. Mais do que a morte do personagem, o que me chocou, e ressoa em mim, foi seu ato. Por conta de seu tempo limitado, o belga comete uma ação desesperada, porém planejada, em nome de um bem maior. Minha mãe morreu comigo, em algum momento enquanto íamos até o socorro. Por anos, esperava por uma situação similar, então aconteceu, e eu agi. Não pensei, eu a carreguei, peguei um carro e a vi sendo levada em uma cadeira de rodas. Em algum desses instantes, foi a última vez em que ela me viu. Assim como nunca saberei a validade da atitude de Poirot, há perguntas que ficarão no ar para todo o sempre. Exceto que nenhuma vida é fútil. Fazemos o que podemos. Então acontece.
Eu fechei um livro. Agora, componho outro, texto a texto, de novo e de novo. Há uma leveza na condição do fim. De que algo, dada sua importância, seguirá conosco pelo resto de nossas vidas, mesmo que o objeto não possa mais ser acessado. Ainda posso lembrar e meus dedos, de novo, obedecem aos comandos do cérebro. Por quanto tempo? Não é uma questão importante, mas inevitável. Por isso cada sílaba de vida deve ser sentida e posta numa organização que chegue a um todo satisfatório. E não me importar se isto será alcançado, porque um novo som pode surgir de surpresa. Improvisamos na busca de algo melhor, maior. O fato de que ela foi feliz, se não por inteiro, mas com certeza em capítulos, talvez longos, é o que acalenta. É o que importa, afinal. A vida é cruel e fascinante, pois pode ser boa, como os começos. Se o verbo se fez carne, que é finita, sigo e conjugo: eu luto.
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Daniel Russell Ribas é membro do coletivo “Clube da Leitura”, que organiza evento quinzenal no Rio de Janeiro. Organizou as coletâneas “Para Copacabana, com amor” (Ed. Oito e meio), “A polêmica vida do amor” e “É assim que o mundo acaba”, ambos em parceira com Flávia Iriarte e publicados pela Oito e meio, e “Monstros Gigantes – Kaijus”, em parceria com Luiz Felipe Vasquez, pela Editora Draco. Participou como autor dos livros “Clube da Leitura: modo de usar, vol. 1”, “Lama, antologia 1” (publicação independente), “Clube da Leitura, volume II”, “Sinistro! 3”, “Ponto G” (Multifoco), “Caneta, Lente & Pincel” (Ed. Flaneur), “Clube da Leitura, vol. III”, “Veredas: panorama do conto contemporâneo brasileiro” e “Encontros na Estação” (Oito e meio). Na RUBEM, escreve quinzenalmente às segundas-feiras.
Aquela q deseja bom dia.
09/12/2019
Lutas. Assim como eu.
Daniel Russell Ribas
15/12/2019
Obrigado, querida. Lutemos. Abraço, DRR
TANUSSI CARDOSO
09/12/2019
Simplesmente emocionante e verdadeiro. A morte é um novo (re)começo, para quem vai e para quem fica. Para este, resta o consolo do amor oferecido em vida, e se tiver alguma fé ou religião, a certeza do reencontro. Daniel, filho e escritor, de alguma forma tenta exorcizar o luto, a dor e a saudade através de um texto que, se não é de despedida, é um ato de carinho e delicadeza de um filho que amou e foi amado. Creio que não há maior felicidade na vida que o direito ao amor.E esse texto-poema, além de amor é de pura gratidão. Obrigado, Daniel, pelo conforto de suas palavras.
Daniel Russell Ribas
15/12/2019
Eu que agradeço, Tanussi. É um tempo para ouvir, sentir e ser humilde. Para mim, com certeza. Abraço, DRR
Alexandre Brandão
09/12/2019
Meu caro Ribas, li suas palavras com tristeza, pois o momento é de tristeza, mas também com a alegria (bem, não é alegria, mas não encontro a palavra correta agora) de ver que você enfrenta esse luto absolutamente imerso na mais completa sabedoria (que não é perene, paciência, mas que vira e mexe nos alcança).
Daniel Russell Ribas
15/12/2019
Obrigado, querido. Busco neste período assimilar o máximo para entender o que houve e o que haverá. Restarão lembranças e o desejo de aprender com os erros e os acertos. Abraços, DRR
monicamribeiro
09/12/2019
Lindo e tocante.
Daniel Russell Ribas
15/12/2019
Obrigado, querida. Abraços, DRR
Cássio Zanatta
10/12/2019
Belíssimo.
Daniel Russell Ribas
15/12/2019
Muito obrigado. Abraço, DRR