A compensação de se viver bastante é a coleção de lembranças que acumulamos. Sutilmente, vamos nos transformando em contadores de histórias, e algumas recordações, de tão antigas ou fantásticas, carecem de credibilidade por parte dos que as ouvem ou leem.

Outro dia, um estimado amigo mandou mensagem para contar que obras de Henri Cartier-Bresson estão em exposição no Porto, Portugal. A memória começou a tirar fichas de seu arquivo. Já era fã do fotógrafo, quando visitei a primeira mostra de seus trabalhos geniais, em Tóquio, no longínquo 74. Trouxe nas retinas aqueles instantâneos incríveis, feitos com uma câmera simples e sem qualquer acessório, sempre em preto e branco, captados de modo tão sutil que os fotografados pareciam não perceber a presença do autor. E na mala, um catálogo em japonês que conservo até hoje.

A exposição portuguesa, pela descrição, deve conter alguns retratos que vi no Japão: são eternos, como toda obra prima. Talvez chegue por aqui, pois exposições preciosas como essa costumam ser itinerantes. A de 74 circulou pelo mundo e passou por Washington, onde o homem que amei pôde vê-la também. Agregou ainda mais valor, quando ele me disse que encontrara meu olhar, naquelas obras que venerávamos. Meses depois, a mostra chegou a São Paulo e então foi minha vez de reencontrar os olhos distantes que povoavam meus sonhos. Como não houvesse catálogo em português, alguns rostos retratados por Cartier-Bresson, apesar de famosos, continuaram anônimos…

Com a Mona Lisa igualmente tive reencontros. Vi a obra de Da Vinci pela primeira vez também na capital japonesa, no parque de Ueno, em cujos jardins há reproduções de esculturas consagradas em tamanho natural, como O Pensador, de Rodin. Fiquei surpresa com o tamanho diminuto da tela, mas suficiente para demonstrar todo o talento do mestre. Um deslumbramento que me emudeceu e paralisou, apesar de os seguranças proibirem que se parasse diante do quadro, protegido por várias lâminas de vidro à prova de balas e isolado por cordões.

Décadas depois, fui a Paris em duas ocasiões distintas e, em ambas, estive no Louvre, a visitar aquele sorriso enigmático. O mesmo impacto de estar diante de algo extraordinário e único. No museu, foi possível permanecer mais tempo ao lado da Gioconda, o difícil era driblar a euforia dos turistas. Mesmo assim, pude lhe soprar um beijo e desfrutar da pseudo-intimidade de duas mulheres que jamais conviveram e ali se examinavam à distância…

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Madô Martins é escritora e jornalista, com 15 livros publicados e mais de 900 crônicas impressas aos domingos no jornal A Tribuna, de Santos/SP. Na RUBEM, escreve quinzenalmente às sexta-feiras.