(Imagem: Sebastião Barbosa)
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Quando se fala em “cronista do Espírito Santo”, não há quem não fale em Rubem Braga – aliás, quando se fala apenas em “cronista” também é nele que se fala, principalmente. Mas o Brasil teve também um time considerável de bons cronistas e entre eles se inclui um que vinha do mesmo Espírito Santo. José Carlos Oliveira, o “Carlinhos Oliveira”, era o nome do conterrâneo e do companheiro de crônicas, as quais faziam sucesso – com razão – sobretudo nos anos 60. É possível até encontrar algumas semelhanças no estilo dos dois cronistas capixabas, afeitos que eram à melancolia, mas das crônicas braguianas ainda emerge uma suave aceitação da vida e das coisas como elas são, ao passo que nas crônicas de Carlinhos Oliveira – sobretudo as que foram publicadas em “A revolução das bonecas” (Editora Sabiá, 1967) –  a angústia, a amargura, o vazio e o nada costumam dar o tom. É possível encontrar também a conformação e até a alegria nas suas crônicas, mas apenas depois de um denso e doloroso mergulho existencial.

Deve-se lembrar, contudo, que Carlinhos negava ser o personagem das suas crônicas – não era a si mesmo que se referia quando dizia “eu”. O cronista alegava possuir mais heterônimos do que Fernando Pessoa, embora nenhum lhe servisse de refúgio para a sua consciência. Por isso, a matéria das suas crônicas não seria tanto a sua vida pessoal, e sim “determinadas angústias passageiras ou alegrias igualmente condenadas, que descubro no coração ou no próprio vento”. Por outro lado, o cronista assume que uma literatura honesta deve refletir como um espelho o que se passa por dentro e por fora do autor no momento em que escreve. Era ainda o seu coração que Carlinhos auscultava, mas o que ouvia era a vibração de uma vida comum a todos nós. Ele era uma espécie de fotógrafo que flagrava a nossa infelicidade – quem é que, diante de uma imagem captada, se preocupa com o estado pessoal do fotógrafo? E o que os instantâneos trazidos à luz pelo cronista revelam é, sobretudo, a grande falta de sentido.

Ele era uma espécie de fotógrafo que flagrava a nossa infelicidade – quem é que, diante de uma imagem captada, se preocupa com o estado pessoal do fotógrafo? E o que os instantâneos trazidos à luz pelo cronista revelam é, sobretudo, a grande falta de sentido.

Sim, enquanto os outros viviam na doce ilusão de que há um sentido a extrair do mundo, o cronista expunha a amarga desilusão da vida: ainda é noite e sempre será. Entre todos os destinos oferecidos a um homem, não havia um só satisfatório. Nessa (falta de) perspectiva, “existir” era algo duro, árido, insípido, “pior do que uma cruz, porque nem sequer doía, nem sequer pesava”. Haveria uma solidão cósmica – tristeza sem remédio, obrigando o ser humano a recorrer a máscaras, uma por dia, cada qual mais engenhosa, para se esconder daquilo que o esmaga. Aquele mesmo cansaço que destruíra Nietzsche também aniquilava o cronista.

Nem sempre havia sido assim, contudo. Aos 18 anos, o cronista – ou uma das versões de si mesmo –, que andava quebrando a cabeça para saber que diabo de coisa é essa que se chama de vida, havia decidido romper com todos os preconceitos, e mesmo com as crenças mais sensatas que vinha acumulando. Quis começar de tudo de novo, o que o deixou sem céu para onde ir depois da morte. Tornou-se amassado pelo excesso de lucidez, lacerado entre a fome de religião e a incapacidade crítica de acreditar em Deus – embora nunca tenha alcançado a graça de um ateísmo completo. Mas era cioso da sua liberdade e da sua independência, não suportando toda adesão cega a qualquer espécie de crença, seja religiosa, política ou social.

Em uma perspectiva talvez camusiana, o cronista se recusava a dar qualquer salto de fé, mas, igualmente, não cedia aos apelos da “razão”, por saber que ela própria exige a sua parcela de crença, ao não dar conta de explicar o absurdo da existência. Diante disso, o que podia fazer era chafurdar em cima da lama de uma vida sem propósito: “Talvez eu seja a única pessoa que, na minha geração, se recusa a construir-se; que se oferece na forma de uma sequência de fragmentos; que não crê em nada, em suma”. Negava-se, portanto, o “vir-a-ser”, e era por isso que, aos 30 anos, o cronista estava no limiar da sua personalidade: ainda não havia nascido. Havia analisado minuciosamente a si mesmo e concluído que nada havia feito até então em sua vida, além de trair sistematicamente os seus princípios e ideais. Mas aquele que chegasse bem vivido aos 30 anos não poderia esperar mais do que repetição – e então a própria morte.

Em uma perspectiva talvez camusiana, o cronista se recusava a dar qualquer salto de fé, mas, igualmente, não cedia aos apelos da “razão”, por saber que ela própria exige a sua parcela de crença, ao não dar conta de explicar o absurdo da existência.

Seria, aliás, a morte a única saída viável para uma realidade marcada pelo vazio e pelo nada? O cronista já acordava pela manhã com essas palavras na cabeça: “Não te esqueças de que vais morrer”. Sabia que iria morrer cedo – bem mais cedo do que merecia. Mas parecia possível adotar certas estratégias para conviver com o absurdo. O cronista já não ousava exteriorizar completamente o seu verdadeiro ser – difícil, silencioso e enraivecido. Em vez disso, mostrava uma espécie de estilhaço, a que chamava de “eu provisório”. Era um péssimo administrador de si mesmo, o contrário do que queria, e só se podia esperar que esse sentimento contra si fosse estendido também aos seus semelhantes, mas a verdade é que o cronista também revelava se apegar à fragilidade do ser humano e era solidário à sua capacidade de errar. Não apenas era possível viver e conviver no meio da falta de sentido, mas inclusive encontrar nisso satisfação.

Afinal, no ponto mais extremo da desesperança havia certa alegria, no fundo da mais negra infelicidade jazia certo descanso, e na maior falta de sentido havia a compreensão de algo superior. Tinha, é verdade, certa inveja dos que se realizam, dos que sabem o que querem, mas o cronista não prometia corrigir a si mesmo, realizar tarefas adiadas. O ideal seria que se conseguisse aceitar a existência e de fato existir ao mesmo tempo em que se contemplasse as suas próprias ações, bem como as alheias. Claro, em dado instante, só poderia haver consolo em pousar a cabeça sobre os seios maternos, mas mesmo a coragem e a valentia – e é preciso algo assim para viver no vazio – não prescindem do desamparo, e nem significam segurança.

Essa existência é ainda a autêntica, porque também há os que só existem quando os outros pensam neles – o famoso “existir em público”, a revelar um medo vertiginoso do nada, uma recusa do ser, um modelo de suicídio. O “não ser” de uma celebridade é muito parecido com o “ser”, apenas com a derrota no lugar da alegria.  Deixa-se de ser para se tornar o que se espera que seja, e poucos famosos resistem a essa tentação. Quem poderia dizer que essa negação da existência é melhor do que assumir a sua falta de sentido, como faz o cronista?  A solidão dele é resultado de uma conquista cruel, escadaria sem-fim cujos degraus são sempre os mesmos.

Deixa-se de ser para se tornar o que se espera que seja, e poucos famosos resistem a essa tentação. Quem poderia dizer que essa negação da existência é melhor do que assumir a sua falta de sentido, como faz o cronista?

Os tempos modernos têm nos feito passar por cima de muitas dessas inquietações, de modo que resolvemos simular a nossa felicidade, mas há um momento em que desce sobre nós uma amargura sem origem definida. Há certas coisas que o cronista não entendia como é que nós podemos consentir. Por exemplo, ficar oito horas com sapatos nos pés, a mesma roupa, de gravata, sem saber como é que o vento está inclinando as folhas das árvores. “Trabalhar até tarde, embotar suas melhores qualidades para conseguir se sustentar e sobreviver, ainda que ao custo dos seus melhores sonhos. Entregar ao patrão os dias mais lindos, mas o próprio patrão está envolvido na engrenagem e tem lá a sua úlcera, o seu medo do câncer”. Ao final, voltar para uma casa que é também jaula. Que coragem é se casar, que audácia é ter filhos!

É interessante que, mesmo explorando de forma tão profunda a angústia do ser, o cronista – e já agora se pode falar efetivamente em Carlinhos Oliveira – não pretendia fazer com que os seus leitores se desmotivassem na vida.  No ato de escrever – que ele considerava tão efêmero quanto o existir –, ele desejava que, onde aparecesse a palavra “angústia”, as pessoas lessem “esperança”. Ao colocar no papel a amargura da vida, o cronista já provava que, no mínimo, ela não era tão “indizível” quanto o sofrimento de cada um podia fazer acreditar. Escrita, essa dor já se encontrava em um plano mais claro. E então talvez fosse mais fácil de se lidar com ela.

Henrique Fendrich

 

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Editora Sabiá, 1967.

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