(Imagem: Átila Roque)
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Parece que estou acordando. “Volte a escrever, Xandão”, um fiapo de voz-pensamento ecoa, repetindo-se feito um despertador que não quer ou não sabe calar. “Já vou, só mais um segundo, um mandato, uma vida.” Espreguiço.

Não sou dos que se lembram dos sonhos, mas não me esqueço de um recente. Estou em São Paulo, tento usar um APP para me conectar a uma empresa aérea e não consigo. Caminho descalço, o que me faz comprar umas sandálias. No segundo posterior, na companhia de um irmão e de uma irmã, desço em Orlando. Sinto-me preocupado por não ter passaporte, mas meu irmão, que tem a autoridade de já ter vivido nos Estados Unidos, dá de ombros como quem diz: “Não esquente”. Estamos num parque, num parque de chão batido, e reparo nas sandálias recém-compradas. (Recém-compradas? É um sonho, o tempo dança em torno de si mesmo.) Elas continuam nos meus pés, mas, por mais que me esforce, não distingo sua cor. Já não estou no parque, mas na casa de meu sobrinho, e ali minha sobrinha-neta pula no meu colo e pergunta a minha idade. Ficamos brincando com os números 57 e 58. Eu digo 57, ela diz 58 e, em seguida, me chama de velhinho.

Devo ser mesmo, pois não consigo acordar, acordar de fato. A realidade me empurra para a cama, o travesseiro me segura. Mas, ó, não estou na cama. A preguiça é apenas simbólica. A preguiça é um ato macunaímico-político. “Volte a escrever, Xandão”, martela a voz-não-mais-pensamento-mas-comando.

Sento-me diante do computador e, desatinado, teclo. Um passarinho canta lá fora. Paro tudo para ouvi-lo. O canto, de fato, parece um coaxar, de onde concluo que os sapos criaram asas. Vi num filme americano — não vou procurar o nome — uma chuva de sapos. Então, se os batráquios não estão voando, o coaxar é uma tormenta anfíbia. “Não consigo escrever”, vocifero. Lá da cozinha alguém diz que estou falando sozinho. Quem estará na cozinha se estou sozinho? Presto atenção. Não é voz de ninguém, e sim o pio de um pássaro fajuto e feio. Os pássaros perderam as asas e fofocam sobre nós, os humanos, ou os humanos preguiçosos, ou os humanos aturdidos pela realidade.

Uma expedição da Nasa fotografa o corpo celeste que estaria na fronteira do sistema solar, a seis bilhões de quilômetros da terra. As fotos levarão muitos anos até chegar aos computadores da agência americana. Para os lunáticos — esses cientistas que, é certo, são as mãos de vários interesses, sem que deixem de ser, como os poetas, a voz do delírio, do sonho e da aventura —, a demora é um nada diante do destempo do universo. Enquanto a terra dá trezentas voltas em torno do sol, o planetinha ora em exploração dá apenas uma. Se nele estivesse, eu não teria nem 20% de um ano, queria ver minha sobrinha-neta me chamar de velho. Aliás, os velhinhos de lá, se velhinhos houver, acharão os milenares homens e mulheres bíblicos apenas umas crianças expostas ao infortúnio do calor e do frio. Rirão da ficção que criamos para nos ajudar a lidar com uma vida tão curta.

Atrás de minha sombra, me escondo e não escrevo nem falo coisa com coisa. Depois das férias, sou o mesmo cansado — agora com o talento emperrado ou encarcerado.

Preciso dormir. Só mais um segundo. Só mais um mandato. Só mais uma vida.

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Alexandre Brandão é autor, entre outros, de “O bichano experimental” (Editora Patuá, 2017), uma seleção de suas crônicas, algumas publicadas aqui na RUBEM, e de “Qual é, solidão?” (Editora Oito e Meio, 2014). Além de escrever crônicas no CNP Notícias, jornal de sua cidade natal, Passos (MG), tem contos e crônicas publicados em revistas eletrônicas como Pessoa, Cruviana e Germina e na InComunidade (de Portugal). Participa do grupo Estilingues (www.facebook.com/estilingues), que publica livros de contos para circular fora do círculo comercial. Na RUBEM, escreve quinzenalmente aos domingos.