
(Imagem: Bernardo Ceccantini)
Você conhece o tipo: é de manhã, o dia ainda está se fazendo, mal dá para saber se o sol vai sair, e já está falando alto. Grita no ponto de ônibus como se estivesse num show de heavy metal. As pessoas em volta o reprovam com seus olhos inchados, mas ninguém tem coragem de fazer shhh e ele continua sua epopeia ruidosa.
Eles são muitos e estão espalhados pelo mundo. Nas salas de aula, nos consultórios, nos bares e, sobretudo, na casa ao lado. Parece que para ser meu vizinho é preciso ter algo contra o silêncio. Em São Paulo, o senhorzinho do andar de cima arrasta móvel, grita, canta, toca violão, tosse, xinga o neto, aumenta o volume e vive martelando. Está claro que um idoso desses abandonou o projeto natural da velhice, que é tornar-se sábio e sereno numa poltrona confortável, e, portanto, não merece nenhuma complacência.
Em dias difíceis, respondo sua cantoria com vassouradas no teto, na esperança de que o barulhento, surpreendido por barulho maior, perceba o que está fazendo. A única maneira de se pedir silêncio é quebrá-lo, às vezes em vários pedaços.
Como os exaltados não se satisfazem com pouco, falar gritando não é o único defeito deles. Há outros hábitos terríveis, e o pior é o de nos encharcar com perdigotos, uma chuva de baba da qual nunca se sai seco. Na internet, gostam de escrever aos berros, tudo em maiúsculas. Você nunca sabe se estão querendo dar destaque, gritando ou se apenas há um besouro pousado no caps lock.
Um ponto decisivo para caracterizar os ruidosos é o modo de espirrar. Insatisfeitos com o discreto espirro do cidadão comum, que consiste em inalar um pouco de ar com a boca aberta, fechar os olhos e levantar a cabeça, fazem um grande e espalhafatoso preparatório para anunciar sua golfada.
Também é comum o tipo falar ao celular em locais públicos mas fechados – nos ônibus, por exemplo. Conversa tão à vontade que parece estar no conforto de sua sala. Quando divido viagem com um desses, tenho a impressão de que sei mais sobre sua vida que um amigo de infância.
Em casos piores de insaciável fome por decibéis, o sujeito não se conforma em gritar apenas em casa e decide que a cidade precisa compartilhar de seu barulho. É ele quem dirige o carro com todos os vidros abertos e o som no último. Uma vez, parei ao lado de um no semáforo e fiquei constrangido, não pela situação em si, mas porque o motorista permanecia imóvel em meio ao funk ostentação. Não acompanhou a batida com a cabeça, nem abriu a boca para fortalecer o refrão. Ficou quieto, olhando sem compromisso para nenhum lugar específico, como se fizesse força para encontrar na memória quantos pães de sal sua mãe pediu para comprar: contando os plaquê de cem, eram dois ou três?, dentro de um Citroën, mas só o tio come uns quatro, aí nóis convida porque sabe que elas vêm, acho melhor levar seis, se sobrar faz torrada.
O problema, alguns dirão, é o funk. De modo algum: é o barulho mesmo. Fosse a nona sinfonia de Beethoven, também acharia ruim. É que não tenho a capacidade de me concentrar com tanto ruído, assim como o funkeiro do carro e o Villa-Lobos, que conseguia compor em qualquer situação, alegando que o ouvido de dentro não tem ligação com o de fora. Coisa de gênio. Eu, mero mortal, não posso nem com gente que fica clicando a caneta na biblioteca, téc téc téc téc.
Levo susto toda vez que chega a hora da propaganda na televisão. Não sei quem deu aos publicitários o direito de aumentar o volume da minha tevê de repente. Dá uma vontade de ligar para os órgãos competentes, acionar as autoridades, escrever carta para o presidente. Mas, paciência, não vale a pena. Seria muito barulho por nada.
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Guilherme Tauil é cronista e editor da Zepelim, casa focada na publicação da crônica contemporânea. Formado em Letras pela USP, é autor de “Sobreviventes do verão”, compilação de crônicas escritas para a imprensa de Taubaté. Mantém o blog quartacapa.com e o maior acervo digital sobre Chico Buarque, o youtube.com/tauil. Na RUBEM, escreve quinzenalmente às terças.
Alegra Catarina
04/07/2017
Tauil,
A Mariana Ianelli escreveu uma carta para o vizinho, aqui na Rubem, muito meiga.
Neste link: https://rubem.wordpress.com/2016/07/02/caro-vizinho-mariana-ianelli/ .
Desde então fecho a janela do quarto – tem um enrosco na tranca – um pouco mais cuidadosa que já era costume. Lembro da carta.
Não sei se antes ou depois também escrevi sobre o silêncio.
Neste link: https://alegracatarina.wordpress.com/2015/04/15/ate-que-o-barulho/ .
Contra-exercício ao título “Até que o silêncio nos separe”, do Rubem Penz, escrito para futura esposa, anos atrás.
Aqui também tem qualquer coisa: https://alegracatarina.wordpress.com/2015/06/19/preludio-ao-riso/. Tentativa de ouvir o som para além do limite da audibilidade.
São temas que me agradam buscar encontrar: o vácuo, o silêncio, o eco, O poema mudo, neste link: https://alegracatarina.wordpress.com/2014/08/26/poema-mudo/.
(Desculpe que alongo, dando link, link, link, link na mesa…)
Tua crônica não abrangeu, mas há outro recurso que sempre reparo na escrita, parecido com a indesejável caixa alta, é o uso do ponto de exclamação desnecessário.
Como lição, sempre que posso, evito. Sempre que uso, falho.
Gosto das tuas crônicas: o tom de voz, baixo.
Obrigada, abraço,
Auri
Alegra Catarina
04/07/2017
P.S.: “Seu barulho está aguardando moderação” é recurso maravilhoso que poderia ser muito melhor explorado na busca de uma solução definitiva, de encontro ao silêncio nosso de cada dia. Imagina, por exemplo, se um neném chorasse, a plenos pulmões, contrariadíssimo, no meio desta cerimônia… “Continue sorrindo, e não use exclamação.” “Sua fome está suando a maquiagem dos convidados.” “Vai dar uma volta, ver o que perdeu lá fora.” Eu, pudesse, tinha escolhido a opção “sem som” numa dança contemporânea que o Sesc trouxe pra São Bento outro dia – teria poupado dúzias de tímpanos, sem perder a dança, que era boa. Escritores: usem e abusem do “sua visão distorcida merece melhor análise”. Leitores evitem. Prefiram: “prometo que lerei futuramente, mestre”. Psiquiatras tragam mais pílulas, usem das luvas. “Faça silêncio!” Melhor. “Faça silêncio.” Mas, dout