Quando recolheu as velas e lançou âncora e buscou o binóculo na cabine para esquadrinhar as encostas rochosas, as convidativas praias, as cavernas, as montanhas ao centro cobertas de vegetação espessa e virgem; quando pensou ouvir tambores, uivos, sibilações melódicas vindas em segredo e trazidas rente à superfície em intervalos incertos; quando anoiteceu e o cristal das águas deixou de ser arremessado contra os penhascos, serenado que fora pelo olhar doce da lua em quarto crescente; quando a solidão, que sempre lhe trouxera o sono, levou-o para o outro lado da ilha, lá onde os sonhos caminham de lado como caranguejos ora caçando, ora fugindo do apetite das aves; quando, enfim, amanheceu um dia ofuscante, sem sol nem chuva, e a provisão de água doce permitiu o último perfume de café, ele se forçou a desembarcar com seu bote, empunhar os remos, empreender esforços compassados para, quem sabe, salvar-se.

Quando chegou ao limite das falésias, ao último passo antes do último voo inundar de oxigênio o último suspiro, já com os braços afastados em forma de cruz para, quem sabe, expiar os pecados que jamais cometera; quando o vento contra si rosnava em seus ouvidos e fazia com que lacrimejasse sem que isso fosse um lamento ou uma saudade ou uma esperança; quando os pelos se arrepiaram e o coração suspendeu por instantes a decisão; quando a vista se deslocou dos próprios pés em busca do horizonte e encontrou, ao longe, o veleiro; quando a curiosidade fez a mão direita recolher-se para encontrar o ventre, e a esquerda compôs junto à testa um filtro para o excesso de luz e, talvez assim, permitir às pálpebras um piscar menos frequente (quando as lágrimas começaram a cessar); quando as pernas obedeceram à súplica da vertigem e recuaram dois passos, apenas dois e suficientes para a vida ser crível; quando, enfim, a manhã de luz intensa e branca prometeu o raro movimento de alguém em sua direção, ela cogitou descer até a praia.

Quando seus desesperos trocaram o primeiro olhar mais de perto, ilha e navegante trataram de retardar seus movimentos, talvez por exaustão, dúvida, medo; talvez por falta ou excesso de modo. E quando ele caiu, primeiro de joelhos, depois em quatro apoios e, no giro sobre os ombros, até repousar de costas, o sol teimando em rasgar o tecido etéreo das nuvens e a ofuscar seus olhos, os braços acompanhando o eixo do corpo e as pernas afastadas e a areia fina a se embrenhar em seus cabelos levada pelo sopro rasteiro do vento, ela o socorreu, acolhendo-o em seu colo, dando de beber, de comer, de sentir. Em retribuição, ele, agora refeito de sua coragem e força, sentindo-se absolvido de tantos naufrágios, silente diante de sua beleza castiça, prometeu o horizonte – seu único tesouro, ainda que inatingível. Foi quando ambos desejaram crer. E deram-se.

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* Rubem Penz, nascido em Porto Alegre, é escritor e músico. Cronista desde 2003, atualmente está nas páginas do jornal Metro. Entre suas publicações estão “O Y da questão” (Literalis), “Enquanto Tempo” (BesouroBox) e “Greve de Sexo” (Buqui). Sua oficina literária, a Santa Sede – crônicas de botequim, dez antologias, foi agraciada com o Prêmio Açorianos de Literatura 2016 na categoria Destaque Literário. Em RUBEM escreve quinzenalmente às sextas-feiras.