Madô Martins*

O acaso nos manda avisos, com paciência de Jó, até que, enfim, ouvimos e entendemos. Custei a perceber mensagens recentes. Mas, quando sua tradução finalmente se fez, a coragem saiu da acomodação e chegou a hora do basta. Aos poucos, vou me pondo outra vez de pé, restauro as trincas, experimento a paz. Acabou a insônia, a prisão de ventre, o sobressalto, a eterna espera. Abri a porta e convidei o hábito a sair, sem aquela última olhada de quando se tem apego.

Um dos sinais foi o sonho. Estava na feira, escolhendo limões. Sei lá por quê, queria cortá-los em quatro ali mesmo na barraca, com uma tesoura. Claro que não dava certo: os quartos ficavam disformes, a casca grudava na lâmina, os gomos se desmanchavam. Tentei várias vezes, em diversas bancas, destruindo muitos limões a tesoura. Até que um senhor sugeriu que usasse uma faca, bem mais eficiente. Mas, enquanto falava, notei uma bandeja de tomates já divididos em quatro, como eu queria, firmes, vistosos… Abandonei os limões, o velho, e passei a colocar os pedaços de tomate no saco plástico, para pesar e levar.

Outro sinal foi o parafuso. Desde que mudei a decoração do banheiro, um parafuso do armário anterior teimava em permanecer fincado nos ladrilhos. Insisti muito para retirá-lo, mas a posição era ingrata, com o móvel atual entre nós, e me faltavam forças. Usei alicate, chave de fenda, e nada. Resolvi ignorá-lo, apesar de sua presença saltar aos olhos, cada vez que entrava no cômodo.

A coragem já estava se espreguiçando, quando resolvi enfrentar o desafio: se entrara, o parafuso teria que sair. Subi pela enésima vez no banquinho, levando comigo as ferramentas. Fui revezando o alicate e a chave de fenda, até que um primeiro movimento aconteceu. Animada e já transpirando, insisti nas manobras e, depois de um tempo imenso (tantas coisas para fazer ainda), consegui despregar o parafuso. Prazer como poucos, ao ver o buraco por ele deixado. Agora, bastava cobri-lo com massa, e não mais aquele estorvo me incomodaria.

Juntei as duas mensagens, o sonho e o fato, e veio a constatação. Para que manter situações angustiantes, quando o sossego está logo ao lado, esperando apenas nossa decisão? Difícil colher rosas sem nos ferirmos nos espinhos, dizem. Então, com alguma dor, limpei da casa e da alma o que me perturbava. Recolhi retratos, tirei da vista pertences alheios, apaguei números do celular. Nunca mais incertezas, decepções, desalento. As novas cicatrizes vão se juntar às já existentes e, com o tempo, sei que ficarão mais suaves. Quero mais é tomates cortados e paredes lisas.

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Madô Martins é escritora e jornalista, com 12 livros publicados e mais de 700 crônicas impressas aos domingos no jornal A Tribuna, de Santos/SP. Na RUBEM, escreve quinzenalmente às sexta-feiras.