Rubem Penz*
Proponho uma reflexão aos cronistas. Desejaria muito saber se só a mim, ou a mais alguém (ou a todos), resta um desconforto quando o leitor diz pensar exatamente igual ao que está escrito. É dolorido falar disso. Penoso. Dramático. Na superfície, parece desdenhar da qualidade – ou da capacidade – de compor uma síntese bem-acabada, uma opinião sensata, simples, lúcida. Redonda. Ou, pior, muito pior: desprezar o comentário generoso, o mais cálido dos carinhos, a solidariedade irrestrita. Complicado.
Ao martírio:
O fulcro é temer a sensação de ser pouco original. Caso se tenha escrito exatamente o que o leitor pensa, segundo ele próprio (quem somos nós para desdizê-lo), isto significa ser quase plagiador. Incapaz de oferecer um ângulo inédito, um viés desconhecido, um olhar incomum. Não arranhar a consciência alheia com uma mísera palavra. Caminhar uma lauda inteira e sequer imprimir pegadas. Correr rio abaixo feito tronco sem personalidade. Tivesse escrito ou não escrito, o leitor estaria onde já estava (e ficou). Isso não é ser reflexivo – é ser reflexo.
O que está ruim, porém, pode piorar: serem muitos os leitores a achar que a crônica é igual aos seus pensamentos. E o escritor, jurando ter marcas distintivas, fica com aquela cara de quem digitou de luvas, transou de camisinha (tão seguro quanto infértil), fumou mas não tragou. A voz se perde num coral monofônico. Resposta ao regente. Às circunstâncias, à previsibilidade, ao clichê. Atém-se à partitura do tempo. Não faz um solo, não põe um caco, desaparece. O mestre Assis Brasil, antes de ser escritor, foi músico de orquestra. E confessou a troca de papéis porque ao músico de quadro sobra pouco brilho: linda é a música, gênio é o autor, autoridade é o maestro. Nem o fraque distingue. Aliás, padroniza.
Antes de transparecer um texto soberbo, digo: não é. Ao contrário, garanto. Oferecer um ponto de vista original é um objetivo legítimo, mas isso não faz dele superior. Faz diferente. Pode ser uma visão obtusa, equivocada, absurda. Ridícula. Pior do que a média. O problema é ser medíocre – e esta é, ou deveria ser, a pulga atrás da orelha do cronista incensado à categoria de unanimidade. Uma pulga que cruzou com um grilo e se transformou numa consciência sacana.
E aí? O que será melhor: o vertiginoso sucesso de refletir o arquétipo, ou, com chance de ferir suscetibilidades, cultivar uma pulga falante?
__________
* Rubem Penz, nascido em Porto Alegre, é publicitário, escritor e músico. Cronista desde 2003, atualmente está nas páginas do jornal Metro. Entre suas publicações estão “O Y da questão” (Literalis) e “Enquanto Tempo” (BesouroBox). Desde 2008 ministra oficinas de literárias, com destaque para a oficina Santa Sede – crônicas de botequim, a qual alcançará dez antologias em 2016. Em RUBEM escreve quinzenalmente às sextas-feiras.
Concordo plenamente com você, me tirou as palavras da boca……………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………. Tô de caô.
Sabe o que eu acho? Já que você falou de música, a leitura capta bem a melodia, e se encanta ou não com ela. Ou seja: o leitor fala do todo, enquanto nós, escritores, gostamos mais das minúcias (dos solos, dos improvisos). Assim, se concordam com a gente, concordam com a coisa toda, com a mensagem, algo assim. Não que eles nos veem como usurpadores de suas ideias, mas como alguém que também pensa o que ele pensa. Ou assim parece, pois nem sempre o que se lê foi o que foi escrito, o que já é outra história.
Gostei da sua bola levantada, me fez pensar um cadinho.
Ótimas colocações, Alexandre – qualidade, aliás, que não constitui novidade. Quero compartilhar contigo, corroborando, a opinião de uma amiga: ” Será que a pessoa que declara pensar igual ao cronista, pensava realmente assim antes de ler a crônica? Ou suas ideias foram iluminadas pela leitura e então se convenceu que já pensava assim antes? Até pode ser que a pessoa pensasse parecido, mas seria capaz de expressar com a clareza do brilhante cronista? Ficam essas duas perguntas.” Ivone Izquierdo
Abração e muito obrigado
Poxa, a Ivone ainda foi mais longe, trouxe de fato uma questão bacana. Viva a escrita, viva a leitura.
Ficou muito bom o texto.
Pena que o novo casal comeu a cabeça do percevejo, no final, traindo a combinação.
Quem poderia imaginar isso, vindo do grilo.
Abraço, Auri
Obrigado, Auri.
Abraço, Rubem
Eu acho que a Ivone falou algo bem importante. Parece-me que por vezes o cronista traduz pensamentos de que a própria pessoa não havia se dado conta. Não é à toa que, mesmo praticando um gênero de aparência descompromissada, os cronistas são alçados à posição de “formadores de opinião”, o que gera tanto essa concordância que nos parece tão superficial como aquelas lastimáveis reações de quem não concordou, do tipo “que decepção”, “perdeu um seguidor”, e coisa e tal. No fundo a gente quer oráculos, e o cronista, mesmo sem querer, se tornou um deles. Acho que os dois efeitos podem ser reduzidos se o cronista tiver a habilidade de construir o texto de tal forma que, de início, o leitor pergunte “mas afinal, de que lado esse cara está?”, e à medida que vai lendo e tentando entender ele começa a pensar por si só naquilo que está sendo dito e, se formos bem sucedidos, chegará ao final à mesma conclusão que queríamos passar, mas que ele rejeitaria ou aceitaria passivamente se a disséssemos abertamente..
Henrique, obrigado!
Faz-nos parecer melhor. Um dia ainda quero trocar uma ideia contigo sobre o tema “blindagem”.
Abraço, Rubem
Rubem, o cronista conseguiu concatenar as ideias confusas ou dormentes do leitor pouco afeito a transpor para o mundo das letras seus ensaios pensantes ou logísticos e o cronista tal qual soberbo mágico conseguiu toda essa proeza , ordenar pensamentos desarticulados e transpo-los com habilidade para o papel e que papel! Impresso! Mais que oficial, erudito, legível, acessível! Heroi que merece simpatia e gratidão! E é alguém importante para isso fazer ao mesmo tempo que engrandece o leitor que é da mesma raça humana, portanto pensante! É isso me fez lembrar uma crônica do nosso grande é adorável Lobato sobre o macaco que estava com sua macaca no topo de uma árvore no paraíso , quando o Macaco caiu e bateu a cabeça numa lage de pedra e levantando-se atordoado e desarvorado,começou a pensar quê pensava e a macaca que acorrera a socorre-lo em solidariedade ou imitação passou a pensar que pensava também! Abraços e parabéns!
Mariza, gostei desta analogia com o mágico.
Muito obrigado.
(Agora sobre a piada, lembrei daquele bordão antigo do programa “Planeta dos Homens: o macaco está certo!)
Abraço, Rubem
Gosto desta discussão. Penso nisso bastante. Aliás, atualmente ando pensando feito uma amiga e leitora: ela diz que o artista, em nosso caso, o cronista, faz com o texto o que as pessoas não conseguem com suas vidas, daí o brilho e a cumplicidade. De forma misteriosa contribuimos, o que é uma forma bonita de pensar. Tenho precisado desta definição. Espero ter acrescentado. Abração!
Acrescentou muito, Marco. E fico feliz com todo o debate suscitado aqui e na rede social. Não é um tema fácil, nem que se possa contemplar na integridade. E só tenho a agradecer a vocês.
Abraço, Rubem
Ver fazer não é saber fazer. Isso serve para uma lasanha, para uma crônica e para muitas outras coisas. Concordar, ou ser persuadido (na maioria das vezes um misto de ambos, só que com mais páprica na fase da indução) não é pensar igual, principalmente antes de ter tido contato com o pensamento. Somente na hora em que for preciso fazer a tal lasanha é que se vai perceber que, na realidade, não se sabia fazer. Eis aí o mérito do mestre-cuca da pena, bic ou teclas. Ainda bem que há muitos chefs preparando crônicas para saborearmos. Ao molho branco ou ao molho vermelho, com páprica, por favor, para não virar artigo de opinião. Já ia esquecendo, dizem que noz moscada vai bem no molho branco.
Anthony, muito obrigado! Teu comentário me deixou com a pulga atrás da orelha. E ainda teve o mérito de trazer água na boca!
Sim: noz moscada, por favor. Senão vira neutro bechamel. 🙂
Abraço, Rubem