
Raul Drewnick*
Discernimento é o tipo de coisa que poderíamos ter se soubéssemos o que é.
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Pelo andar da carruagem, devo estar em Estocolmo por volta de 2059, se ainda houver Suécia e Prêmio Nobel.
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A ideia que eu tenho de um lar é um gato cochilando no sofá. Todo o restante pode ser como for.
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Gatos deveriam ser trazidos no bico por cegonhas e lançados de nuvens sobre as casas, em manhãs de primavera.
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Deveria haver uma palavra mais forte e intensa para exprimir os tormentos pelos quais passa a alma desde que conhece o amor, ainda que o conheça, como costumeiramente ocorre, numa dessas manhãs gloriosas e douradas nas quais somente anos depois alguém, rememorando-a, pode ver apenas mais um dos embustes do demônio para arrastar um homem ao seu reino de trevas e de infortúnios.
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Escrever. Há de ter um homem, entrando já na última trilha do seu caminho, coragem para dizer, como se estivesse comentando ser padeiro ou pedreiro, que é isso que ele faz desde os quinze anos, com a mais cega, aguda e estúpida obstinação?
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A palavra amor deveria ser dita sempre por nós como se estivéssemos murmurando uma cantiga de ninar para uma rosa assustada, numa noite sacudida por trovões.
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O amor é como os transatlânticos que vemos de longe, iluminados, lançando ao céu os jubilosos sons da orquestra. De manhã, chegam até nós, na praia, restos da festa: bitucas, taças partidas das quais o mar bebeu o batom, guardanapos, uma calcinha envergonhada, um preservativo que intrigará um menino e fará corar sua mãe.
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Obcecado por sexo, é com os botões da braguilha que conversa e a eles é que faz confidências.
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O amor não precisaria ser simples. Bastaria que não fosse tão complicado.
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Acredito que, se bem selecionados, dez ou doze romances podem dar conta de tudo que realmente importa na trajetória do homem no planeta.
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Envergonha-se do tempo em que se exibiu como adepto do amor e, depois, considerando-o uma crença menor, o renegou. Sabe hoje que o indigno era ele – e sempre será.
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Quando digo que a literatura é o que me resta, não estou glorificando o escritor que não sou. Estou lastimando o homem que poderia ter sido.
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Tenho a impressão de que, se um dia me encontrar com Mario Quintana, seremos dois meninos assobiando uma música numa rua comprida e ensolarada.
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* Raul Drewnick é jornalista, trabalhou 32 anos no Estado de São Paulo e na antiga revista Visão. Escrevia crônicas para o Caderno2 e para o caderno Cidades do Estadão, além da Vejinha/São Paulo, Jornal da Tarde e o antigo Diário Popular. Escreveu os livros de crônicas “Antes de Madonna” (Editora Olho d’Água) e “Pais, filhos e outros bichos” (Lazuli/Companhia Editora Nacional), além de ter feito parte de coletâneas e antologias. Possui um livro de contos e duas dezenas de novelas juvenis. Na RUBEM, escreve quinzenalmente aos domingos.
Mariza C.C. Cezar
03/07/2016
ADORO ler você! Rio muito o que é imensamente prazeroso, debato , respondo, observo, aplaudo como se você estivesse presente. Que bom que você não foi quem mais poderia ter sido! Minha dose de egoísmo se delicia com o escritor e lhe digo mais não há a menor dúvida que na data e evento referido estaremos em Estocolmo, pois faço questão de aplaudi-lo em etéreas vibrações! Abraços e obrigada por colorir meu domingo!
Raul Drewnick
04/07/2016
Mariza, colorir um domingo foi a melhor ação que já me atribuíram. Duvido poder igualá-la. Abraços
Marco Antonio Martire
04/07/2016
Não elogio (muito) porque poderia estragar. Um grande abraço, Raul!
Raul Drewnick
05/07/2016
Marco, meu caro, abraços pré-olímpicos.