Cássio Zanatta*

Se o cavalheiro, ou a cavalheira, que ora me lê, coisa que muito orgulha, embora, sendo honesto, também surpresa cause; dizia eu, se o leitor às vezes se sente entediado nessa vida, contando os ladrilhos do chão do banheiro ou o número de lâmpadas que passam pela janela do metrô, o que dizer do Criador, que há bilhões de anos criou essa joça para ver os mesmos erros repetidos, as mesmas ambições, de Menelau a Xerxes, passando por Napoleão e o síndico do prédio que não larga o osso, enfim, os mesmos enganos, a mesma sede de poder, imagine o Monumental Tédio Eterno.

Pois eis que no décimo quarto dia seguido de céu azul desse ano de dois mil e dezesseis, sem nenhuma chuva e com um calor desse em pleno outono, o Altíssimo se cansou. Saiu do snapchat, dissolveu o tablet num apontar de dedo e resolveu mudar aquela mesmice. Decidiu que, dali em diante, o céu seria verde.

Por que? Porque Ele assim o quis, ora. E está decidido. Piscou os olhos, tal como uma Jeannie geniosa, e eis que o céu de azul passou a verde.

Muitos se ajoelharam e choraram o fim dos tempos. O céu se fez verde e o desespero se fez viral. A Amazônia era céu e chão. Motoristas paravam no sinal verde. Palmeirense se assustou com a unanimidade. Até o camelô apareceu, vendendo óculos com filtro amarelo, para a gente poder ver tudo azul de novo. (Aliás, só mais uma armação de camelô: azul com amarelo é que dá verde, verde com amarelo nunca que deu azul. Essas coisas, verdes ou não, Deus não vê.)

Grande confusão se estabeleceu entre as vacas, sem saber onde era pasto e onde horizonte. As hortas se viram no teto do mundo. Nossa bandeira ficou com dois verdes: um, mais escuro, simbolizando as matas; outro, clarinho, em homenagem ao novo céu. Foi preciso baixar uma portaria estabelecendo que esse verde não era abacate, mas da cor das maritacas, que adoraram a honraria e saíram aos gritos, espalhar a boa nova.

O fato é que em pouco tempo o verde cansou. Mais: começou a afligir. Causar pânico. Pessoas se atiravam dos prédios por sentirem a falta do azul sobre todas as coisas. Gente se jogava no mar, porque era o azul que havia sobrado. O profeta do fim do mundo repetia, orgulhoso: Eu não disse?

E os filhos de Deus, a princípio poucos, depois uma multidão, saíram em passeata, exigindo o fim daquela agonia. Levavam cartazes, gritavam gritos de guerra, erguiam os punhos. Consta que crucificaram um sósia do Filho em Realengo. Alguns, os ímpios, falavam em impeachment. Mas Deus é um Sujeito Sensato, Paciente e Misericordioso (com maiúsculas?). Poderia acabar com a blasfêmia (inclusive a deste texto) com um estalar de dedos. Poderia muito bem mandar a Tropa de Choque Celestial dar um basta à desfeita. Transformar a crônica em uma passagem do Antigo Testamento, recheada de pragas, dilúvios e labaredas imensas. Mas não.

Eis que juntou os calcanhares, plim, plim, e fez o céu voltar a ser azul. Lindo como nunca e sempre.

O lado bom dessa história é que as pessoas voltaram a reparar em como ele é bonito assim. O lado ótimo foi que Deus se livrou do tédio por uns bons séculos e séculos, amém. Disse um serafim que até andou assobiando e retomou o gosto por pitanga.

Mas jamais vai esquecer aquela passeata. Gente ingrata, tá louco.

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* Cássio Zanatta é cronista. Já foi revisor, redator, diretor de criação, vice-presidente de criação e voltou a fazer o que sabe (ou acha que sabe): redatar. É natural de São José do Rio Pardo, SP, o que explica muita coisa.  Na RUBEM, escreve quinzenalmente às segundas-feiras.