
Mariana Ianelli*
Ela iria escrever essa história, quando fosse uma escritora. “A menina que não sabia se ajoelhar”, Etty Hillesum. Mas depois de cair de joelhos, mais de uma vez, depois de viajar até o campo de Westerbork, em 1942, Etty não pensava mais em ser escritora. Simplesmente escrevia. Com aquela ironia muito fina que tinha herdado do pai, às vezes até com alegria, ela contou como eram seus dias num campo de trânsito.
Porque não só de passarinhos ou de uma janela para o jardim se fazem as crônicas, Etty fala dos círculos do inferno, das páginas da história sendo escritas por aqueles que chegavam a Westerbork, vindos de Buchenwald, de Dachau, de Amersfoort, que chegavam a Westerbork e então partiam outra vez, agora no famigerado trem das terças-feiras, para algum lugar do leste de onde as notícias não voltavam.
Tudo é ambivalente nessas crônicas. Uma multidão de cabeças raspadas e o pôr do sol sobre os tremoceiros roxos. Tempestades de areia e gaivotas. Um guarda com sua metralhadora pendurada nas costas, colhendo flores, e aquele homem que um dia fez sua mochila e partiu num dos trens por conta própria.
Algumas cenas do campo são quase idílicas, tão irreais quanto a própria desgraça. Etty numa noite de verão comendo repolho junto dos tremoceiros, Etty deitada no seu catre e a Ursa Maior sobre os barracões. Porque nem tudo nesse inferno é torre de vigia, arame farpado, lamaçal. Há também alguém lendo Rilke para um amigo, há uma indignação profunda mas limpa de rancor, e de repente a sensação de que a vida parece diferente, que também ela se infiltra num campo de trânsito e coexiste com o horror.
Como membro do Conselho Judaico, Etty podia voltar a Amsterdã de tempos em tempos, mas em Amsterdã Etty sentia saudades de Westerbork, dos amigos, do seu catre, do prato miserável de repolho. Mais absurda do que a vida naquele lugar era continuar vivendo como se toda aquela gente não estivesse sendo deportada, ela pensava.
Quando seus pais e um dos seus irmãos desembarcaram em Westerbork, Etty não quis mais deixar o campo. Tentou o quanto pôde manter a família fora das listas dos transportes, até conseguiu que escapassem uma vez e outra. Em setembro de 1943, ela escreveu pela última vez, para uma amiga, já no meio de um vagão abarrotado. Seus pais e seu irmão iam no mesmo trem. Em 30 de novembro veio a notícia, pela Cruz Vermelha. Completam 70 anos, hoje, que Etty Hillesum morreu em Auschwitz.
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* Mariana Ianelli é escritora, mestre em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, autora dos livros de poesia Trajetória de antes (1999), Duas chagas (2001), Passagens (2003), Fazer silêncio (2005 – finalista dos prêmios Jabuti e Bravo! Prime de Cultura 2006), Almádena (2007 – finalista do prêmio Jabuti 2008), Treva alvorada(2010) e O amor e depois (2012 – finalista do prêmio Jabuti 2013), todos pela editora Iluminuras. Como ensaísta, é autora de Alberto Pucheu por Mariana Ianelli, da coleção Ciranda da Poesia (ed. UERJ, 2013). Estreou na prosa com o livro de crônicas Breves anotações sobre um tigre (ed. ardotempo, 2013). Na RUBEM, escreve quinzenalmente aos sábados.
Raul Drewnick
30/11/2013
Assim como o gato tem um pulo que nunca ensina, ninguém jamais verá a última lágrima da tristeza. Mariana, você faz chorar os sábados.
Mariana Ianelli
30/11/2013
Tão bom estar contigo, Raul, especialmente hoje, lembrando a “Boulevard des Misères” e a menina Etty que se dizia “o coração pensante dos barracões”… Abraço enorme!
Alfredo Aquino
30/11/2013
Querida Mariana
Você nos comove a todos e nos faz ver a imensidão do horror proposto pela barbárie e pela injustiça. A barbárie, a injustiça, o facismo e a discriminação são frutos do descaso generalizado pela educação e do desprezo à Arte e à Cultura. Arte e Cultura não são entretenimento nem diversão. São os únicos instrumentos de libertação que podem nos livrar da repetição do que ocorreu de assombroso e abominável na metade XX – há que lembrar sempre, com exaustão e preocupação para que o horror não volte a acontecer. Obrigado por este texto significativo de memória viva e terrível.
Mariana Ianelli
30/11/2013
Oi, Alfredo, a história e a palavra de Etty nos comovem. Ela queria ser a cronista de Westerbork e o foi…muito além do estetismo. A literatura para ela tinha a ver com a vida e com o que a vida nos exige quando já não existe mais nada à nossa volta além de 20 barracões no meio de uma tempestade de areia. Na arte ou fora dela, se houver alma, nem tudo se perdeu…
samucasan
30/11/2013
o tom da crônica é de quiromância: parece que o narrador está lendo nossas mãos pela voz de Etty que traz toda a catedral de uma vida. Embora a distância de tempo e da experiência distinta, o texto fala de todos nós: as linhas na mão são as marcas de uma esperança. Etty encontra nele a experiência poética (posso até arriscar como mística também). A ambivalência tão presente na experiência contemporânea, já sentia por Etty: é transmutada pelo sabor do repolho, alguém lendo Rilke a apreciação da Ursa Maior. No meio do horror e da bárbarie, encontra-se o poético e a contemplação do mundo e talvez, ela foi a que mais percebeu isso.
Abraços!
Mariana Ianelli
30/11/2013
Ah, Samuel, o “parteiro da alma” de Etty, como ela dizia (e você sabe), era Spier, justamente um quiropsicólogo…e você fala em “catedral de uma vida”, que lembra Rilke…imagine só que num daqueles barracões de Westerbork havia um grupo de leitura de poesia e mística…liam Rilke, mestre Eckhart, Homero…
Fabio Daflon
30/11/2013
Hoje os trens são dos imigrantes ilegais da América Central e México para os EUA, do Norte da África para a Itália. Já foi intenso também da Bolívia para São Paulo. Em tempos mais remotos Graciliano Ramos, citado de memória, diante do quadro Os retirantes de Portinari disse: “Só uma sociedade como a nossa pode produzir essa obra.” As levas e ondas de gente às trevas não são mais apenas consequência das guerras. Hoje, aqui em Vitória-ES, 40 menores invadiram o Shopping Vitória, pois na ordem neoliberal o templo é o do consumo.
lua à vista
brilhavas assim
sobre auschwitz
Paulo Leminski.
A violência urbana é a exploração do rico pelo pobre. Neste momento, pela paz no mundo, faço uma genuflexão. Embora a paz apenas não seja mais suficiente.
Mariana Ianelli
30/11/2013
Lendo seu comentário me lembrei de um trecho de “Asas do Desejo”, Fabio. Diz assim: “que tem a paz que a longo prazo não causa entusiasmo e que pouco deixa contar a seu respeito?”. Para se pensar, não é?
Stanislau Balner
30/11/2013
A lua noîre,
toda cheia de mofo,
é aspirina.
Fabio Daflon
01/12/2013
Eu entendi o amor de Etty à família e a paz desse amor e o seu sentido: morrer em paz, mesmo meio ao horror, foi por causa de seu determinismo afetivo; ainda que pudesse, ao perder a paz de estar entre os entes queridos, ter se libertado da morte concreta, entendi o seu não ajoelhar-se como rebeldia contra a apartação dela e da sua família, entendi sua ausência de rancor. Enquanto Nietzsche escreveu, a seu tempo, ser o ressentimento o motor do mundo.
A paz é uma ventura, lutar em paz por um mundo melhor é uma ventura: assim foi para Chico Mendes; Mahatma Ghandi, Martin Luther King.
Gorbatchov, ao não atender os clamores de Margareth Thatcher e outros líderes mundiais, não mandou soldados para impedir a reunificação da Alemanha em 1989. Logo depois caiu do poder substituído pelo alcoolismo de Boris Yeltsin. Gorba, apesar de neoliberal contribuiu para a paz.
Hoje, felizmente, em muitas famílias há paz. O pouco a contar é da privacidade de cada uma dessas famílias, mas muitos falam dessa paz, inclusive na Igreja. Já a humanidade como um todo precisa ser repensada. Ou a família se tornará, apenas, como escreveu Christopher Lasch, um refúgio em um mundo sem coração.
Seu livro O amor e depois nos fala dessa paz!
Quero o assalto do afeto de estranho na rua, desde que não seja um engodo, e na maioria das vezes é engodo. Sempre tenho umas moedas no bolso…
Etty é o amor, algumas pessoas nascem prontas outras morrem inacabadas. Por isso apenas a paz não é suficiente. Embora seja sempre a dissolução mais humana de todos os conflitos.
Jô Siqueira
01/12/2013
Mariana, dizer “texto tão poético, esse seu” todos já disseram ou dirão. Prefiro afirmar: texto esvoaçante, levíssimo, alma a alma.
Sensibilidade, compaixão, calor verbal. Palavras cúmplices, testemunhas de mais uma tragédia – a de Etty Hillesum.
Fabio Daflon
01/12/2013
Etty Hillesum não foi mártir. Creio ter feito alguma confusão.
“Morrer pela fé era coisa mais natural do mundo até deixar de o ser. Até chegar a maldita modernidade que resolveu dizer que a vida é o bem mais valioso de todos. Até a vida, e a preservação desta, se transformar no centro de todas as coisas.” Fez uma pausa. A sua perna tremia cada vez mais nervosamente, pese embora o esforço do seu braço para a sossegar. “O que é um mártir, afinal?”
Hesitei. “Não sei responder a essa pergunta.”, disse.
“Um mártir é alguém que tem a razão do seu lado e ainda assim fracassa.”, explicou ele. “Um mártir morre porque tem a razão e a única maneira de o mostrar, para que os outros vejam e entendam – ou, pelo menos, aceitem –, é abdicar da própria vida.”
Diálogo entre os personagens Raul Cinzas, velho comunista, e um jovem repórter. (Tordo, João. Anatomia dos mártires. Pag.25. João Tordo e Publicações Dom Quixote. Portugal. 2011.
Malu Furia
01/12/2013
Mariana, que texto mais que lindo!!! Beijos!
Fabio Daflon
03/12/2013
Poema de Miguel Hernandez, música cantada pelo Grupo Tarancon que fez muitos shows no Brasil dos anos 70, ouvi essa música pela primeira vez ao vivo em um teatro cheio, o lugar não lembro nem importa. Ouça no link:
http://letras.mus.br/tarancon/1266779/; depois do aparecimento do Grupo Tarancon é que viemos a conhecer Mercedes Soza. Milton Nascimento gravou com ela outra música, mas não era Te recuerdo Amanda, do poeta e cantor Chileno Victor Jara, que hoje dá nome ao Estádio Nacional do Chile, onde foi assassinado no 11 de setembro de 1973.
Nanas de La Cebolla
Tarancón
La cebolla es escarcha
cerrada y pobre.
Escarcha de tus días
y de mis noches.
Hambre y cebolla,
hielo negro y escarcha
grande y redonda.
En la cuna del hambre
mi niño estaba.
Con sangre de cebolla
se amamantaba.
Pero tu sangre,
escarchada de azúcar
cebolla y hambre.
Una mujer morena
resuelta en luna
se derrama hilo a hilo
sobre la cuna.
Ríete niño
que te traigo la luna
cuando es preciso.
Tu risa me hace libre,
me pone alas.
Soledades me quita,
cárcel me arranca.
Boca que vuela,
corazón que en tus labios
relampaguea.
Es tu risa la espada
más victoriosa,
vencedor de las flores
y las alondras.
Rival del sol.
Porvenir de mis huesos
y de mi amor.
Desperté de ser niño:
nunca despiertes.
Triste llevo la boca:
ríete siempre.
Siempre en la cuna
defendiendo la risa
pluma por pluma.
Al octavo mes ríes
con cinco azahares.
Con cinco diminutas
ferocidades.
Con cinco dientes
como cinco jazmines
adolescentes.
Frontera de los besos
serán mañana,
cuando en la dentadura
sientas un arma.
Sientas un fuego
correr dientes abajo
buscando el centro.
Vuela niño el la doble
luna del pecho:
él, triste de cebolla,
tú satisfecho.
No te derrumbes.
No sepas lo que pasa
ni lo que ocurre.
Florbela Espanca
13/01/2014
Fascinante conto. Tremi. Indignei-me. Desvaneci.